Pagú
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Dez passos de Pagú
segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012
■ 1910 — Patrícia Rehder Galvão nasce em São João da Boa Vista.
■ 1912 — Sua família muda-se para a Rua da Liberdade, em São Paulo.
■ 1924 — Torna-se aluna da Escola Normal do Brás (no destaque).
■ 1930 — Pagu e Oswald fazem um pacto de casamento no Cemitério da Consolação. Três meses depois, simulam a foto da cerimônia diante da Igreja da Penha. No mesmo ano, nasce Rudá.
■ 1931 — Sofre a primeira de suas 23 prisões políticas.
■ 1933 — Publica o romance Parque Industrial.
■ 1939 — Escreve na prisão o romance Microcosmo. Trata-se de um livro cuja primeira parte Pagu enterrou em um terreno baldio em São Paulo para proteger da polícia. Ao tentar desenterrá-lo, três anos depois, a decepção. No local, havia um edifício.
■ 1940 — Casa-se com o jornalista Geraldo Ferraz. Seu segundo filho, Geraldo Galvão Ferraz, nasce no ano seguinte.
■ 1952 — Estuda teatro na Escola de Arte Dramática (EAD).
■ 1954 — Muda-se para Santos e morre ali oito anos depois.
Casamento de Pagú e Oswald
Em 1930, Oswald de Andrade e Patrícia Galvão, a Pagu, se casaram no cemitério da Consolação, em São Paulo. A cerimônia foi mais uma das excentricidades dos modernistas.
"Nesta data contrataram casamento a jovem amorosa Patrícia Galvão e o crápula forte Oswald de Andrade. Foi diante do túmulo do cemitério da Consolação, à rua 17, número 17, que assumiram o heroico compromisso. Na luta imensa que sustentam pela vitória da poesia e do estômago, foi o grande passo prenunciador, foi o desafio máximo", registraram o evento.
Em "Amores Proibidos na História do Brasil", o jornalista e historiador Maurício Oliveira reuniu alguns dos romances mais polêmicos que aconteceram em terras brasileiras.
Para escrever o livro, "pensei na trajetória de Oswald, de Domitila [marquesa de Santos] e dos outros 12 protagonistas. Lembrei dos desafios, das reviravoltas e dos dramas que cada um deles enfrentou", conta.
Além de Oswald de Andrade e Pagu, d. Pedro 1º e marquesa de Santos, as histórias de João Fernandes e Chica da Silva, Giuseppe e Anita Garibaldi, Joaquim Nabuco e Eufrásia Teixeira Leite e Chiquinha Gonzaga e Joãozinho compõem o volume.
Continua em: http://www.historia.net.br/2012/02/leia-um-trecho-do-livro-paixoes.html
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/livrariadafolha/1049243-pagu-e-oswald-de-andrade-se-casaram-no-cemiterio.shtml
Revista Pausa: Pagu e Pearl
segunda-feira, 13 de dezembro de 2010
Revista Pausa: Pagu e Pearl:
Maria Inês Prado, ocupa a cadeira nº 36 da Academia de Letras de São João da Boa Vista, cuja patrona é Patrícia Rehder Galvão, a Pagu
Duas mulheres que cruzaram comigo em duas fases da minha vida – juventude e velhice. Só que, na mocidade, não temos noção de como esses encontros, nem sempre físicos, nos tocam e se refletem pela vida afora. As impressões permanecem adormecidas, latentes, mas afloram, a qualquer tempo, devido a circunstâncias imprevisíveis e até surpreendentes.
Assim aconteceu comigo, em relação a essas duas personalidades que se destacaram no mundo literário e na luta em prol dos menos favorecidos. Patrícia Rehder Galvão - Pagu (sanjoanense – 1910/1962), militante política, jornalista, iniciou sua trajetória artístico-literária em São Paulo, SP, “espiou” o mundo, apontou as injustiças sociais e a hipocrisia burguesa, lutou pelos direitos do proletariado, decepcionou-se com o abismo entre seus ideais e a realidade comunista.
Pearl Sydenstricker Buck (americana – 1892/1973) iniciou-se no mundo das letras na China, onde viveu por quarenta anos, desde pequenina, na companhia dos pais missionários. Ativista, batalhou pela proteção das crianças desamparadas, pelos direitos civis dos afro-americanos e até mesmo contra os testes nucleares. Em razão do comunismo, abandonou a China e voltou para os Estados Unidos. No final da vida, o governo chinês negou-lhe o visto para visitar o cenário da maioria de suas obras. Pearl Buck foi a primeira mulher americana a ganhar o Prêmio Nobel em Literatura –1938.
Na minha juventude, tive Pagu por perto, pois a sanjoanense radicou-se em Santos, onde se projetou no mundo artístico e literário. Pagu era colaboradora do jornal A Tribuna; lia diariamente suas crônicas, sem imaginar que, no futuro, ela teria tanta importância na minha vida. Á época, gravei bem aquele apelido curtinho, frequentemente mencionado no meio estudantil. Quem nunca ouviu falar da JUC, que ensejava reuniões nas casas de família onde compareciam intelectuais e artistas? Pagu se fazia presente em toda parte e foi tão importante para os santistas que mereceu a Oficina Cultural Pagu, hoje localizada na Cadeia Velha, a mesma onde foi presa e torturada, em represália a sua participação nas manifestações dos trabalhadores. Pagu e eu nos banhamos nos mesmos mares, mares que alimentam devaneios e apaziguam a alma...
Não me recordo bem como Pearl entrou na minha vida, se por mim mesma ou por influência de meu futuro marido, fã dos autores estrangeiros. O fato é que me encantei com a mulher combativa, sonhadora, desejosa de melhorar o mundo, mulher amorável e de amores intensos que lhe custaram críticas e até um certo isolamento para viver em paz. Muitas de suas obras, mais de cem, têm caráter autobiográfico. Haja vista “A boa terra”, obra mais tarde transformada em filme pela MGM, que retrata o modus vivendi de uma família chinesa que experimenta todas as faces do sofrimento e do amor. Seca, pobreza, venda de filhos, conquista de status, respeito irrestrito ao homem da casa, submissão da mulher, concubinato dentro do próprio lar são alvo do espírito aguçado e sensível da escritora vaidosa que não dispensava o batom vermelho e os vestidos chineses.
Reavivando Pagu. Jamais me imaginei morando no interior, mas fiquei feliz que o destino me permitisse respirar os ares que Pagu primeiro respirou. Nas reuniões da Academia de Letras de São João da Boa Vista que passei a frequentar como convidada, ouvia, atenta, referências a Pagu. O cantinho dedicado a ela – Centro Cultural Pagu, onde os jovens podem pesquisar, ler, estudar, também me cativou. Meus laços com Pagu ganharam força quando, em 2006, tornei-me acadêmica. Precisando indicar meu patrono, não titubeei: Pagu – Patrícia Rehder Galvão, mãe de Rudá de Andrade, recém-falecido (3/2/09), filho de Oswald de Andrade, escritor e primeiro marido de Pagu, e Geraldo Galvão Ferraz, filho de Geraldo Ferraz, jornalista, segundo marido de Pagu, que muito a amou, aceitando e compreendendo suas excentricidades. Tendo escolhido Pagu para patrona, é natural que quisesse conhecer a fundo a militante, a escritora, a mulher de olhos misteriosos e maquilagem exagerada. Devorei tudo que dizia respeito à vida de Pagu, ficando particularmente impressionada com o trabalho exemplar de Lucia Teixeira Furlani- PAGU, Patrícia Galvão, livre na imaginação, no espaço e no tempo (Ed. UNISANTA , 4a edição,1999, Santos –SP). Uma das obras de Pagu, sob o pseudônimo de Mara Lobo, Parque industrial (1933), primeiro romance proletário brasileiro, é leitura obrigatória para se entender a autora.
Revisitando Pearl Buck. Em 2003 fiz a primeira viagem aos Estados Unidos, onde um de meus filhos mora há anos. A idéia de ir ao exterior sempre estivera ligada à Europa que, pra mim, combina com antiguidade, romance, tradição, cultura e tudo de bom para o espírito. Mas a vida, às vezes, toma rumos inesperados. Numa manhãzinha julina, no verão de 2003, abracei meu filho em solo americano.
- Mãe, traga alguma roupa mais quente- avisara ele dias antes.
-Ué, por quê? Não é verão aí?
- É sim, mas você vai precisar. Vamos para as montanhas.
Fiquei na mesma, mas logo entendi que deveria ser mais uma surpresa para mim, arte na qual meu menino é mestre. Então, sem mais perguntas, pus alguns agasalhos na bagagem. O casaco de couro já ia mesmo, pois, aqui, estávamos no inverno.
Alguns dias após minha chegada, tive que refazer a mala. Um dos destinos? NewYork. O outro? As montanhas. E, por favor, olha o agasalho! Partimos logo cedo. Controlei a curiosidade. Ser desmancha prazer não faz meu gênero. Horas e horas de estrada. Paradas para as “necessidades”. Comidae água numa geladeira portátil para evitar delongas. Após mais de dezhoras, sob garoa e frio, quase noite, montanhas lindíssimas e verdíssimas, as Green Mountains, chegamos ao destino surpresa – cidadezinha de poucas ruas, Danby, em Vermont, estado americano quasedivisa com o Canadá. Aliás, é de Vermont o mármore empregado nomonumento a George Washington, marco imponente que identifica Washington–D.C.
O corpo meio travado, ali estava eu diante de uma casa em reforma, enorme, quatro andares, branca, entradas por todos os lados, cercada por muito gramado; ao longe, o som de água corrente. Vizinhos? Apenas uma casinha velha com um residente mais velho ainda.
Entramos. Cuidado aqui e lá. Escadas estreitas e íngremes. Aposentos amplos. Paredes internas semidesmanchadas, deixando à mostra o recheio de lã de vidro. Janelões. Então...
- Mãe, aqui morou Pearl Buck, aquela que você gostava de ler, lembra?
- Pearl Buck? (mal conseguia falar).
- Filho, quanta coisa eu li dela! Mas...como você descobriu isso aqui?
A casa, patrimônio tombado “vendido” por preço simbólico, tem a reforma condicionada às normas da associação que zela pela preservaçãohistórica. Mas reformar aquilo tudo? Eu estava muda e mais muda fiquei quando meu filho mostrou-me o quarto em que Pearl dera o último suspiro.
E eu? Será que Deus me daria a chance de respirar os mesmos ares? De isolar-me ali, com meus pensamentos e escritos ou simplesmente com meu tricô? Pearl também era tricoteira...
Nem sei quanto tempo ficamos naquele cenário em que só havia uma luminária àbateria. O resto era breu. Rabisquei algumas impressões sob luz precária e zunido de pernilongos.
Depois fui extravasar minhas lágrimas a céu aberto. A chuva fina aplacou-me o coração tumultuado.
Partimos dali tarde da noite, rumo a New York. Porém, diante do mau tempo, pernoitamos em Burlington, maior cidade de Vermont. Foi a única vez em que lavei minha cabeça às três horas da manhã, após uma briga de quarenta minutos com a regulagem da água quente...
Volteia Danby em dois invernos. A reforma da casa que acolheu Pearl está adiantada. Há planos de colocar até um elevador, talvez pensando nas pernas desta mãe... Pertinho de lá, a cachoeira semicongelada já atrai os turistas e, recentemente, mereceu reportagem no New York Times. Para desespero de meu filho, a privacidade começa a ser prejudicada.
Mais motivada do que nunca, a partir dessa surpresa única, voltei a ler Pearl Buck e obras sobre sua vida, sua casa em Danby: The last charpter, por Beverly Rizzon, e A woman in conflict, por Nora Stirling, têm me fascinado. Pearl, mulher de muitos amores, dois casamentos e um relacionamento incomum com Theodore F. Harris, Ted, trinta anos mais novo, seu devoto até a morte. Ano retrasado conhecemos a penúltima moradia da escritora, uma fazenda enorme, em Bucks County, Pennsylvania.
O lugar belíssimo, aberto ao público, acolheu os restos mortais de Pearl. Seus objetos pessoais ali expostos parecem cheios de vida como o era sua dona, cuja exuberância encantou o mundo. Lá encontramos também uma das filhas adotivas de Pearl Buck, Janice, uma sessentona corpulenta e de pouca fala. Pearl teve uma única filha de sangue, Carol, retardada, ‘uma criança num corpo de mulher’.
Assim, tenho, para sempre, minha vida entrelaçada a essas duas imortais das Américas, mulheres avançadas no tempo: combativas, desafiadoras, envolventes, vaidosas, amadas, humanas. E corajosas até a morte: ambas lutaram contra o câncer, mas foram por ele derrotadas. Talvez a única batalha perdida nas suas trajetórias notáveis e com muitos pontos em comum.
Quem sabe aquela casa em Danby, VT, ainda venha a testemunhar, mais intimamente, parte da minha vida. Deus sabe, mas não me conta.
P.S.: Em agosto de 2010 visitei o último endereço de PAGU – Cemitério do Saboó, em Santos.
Assim aconteceu comigo, em relação a essas duas personalidades que se destacaram no mundo literário e na luta em prol dos menos favorecidos. Patrícia Rehder Galvão - Pagu (sanjoanense – 1910/1962), militante política, jornalista, iniciou sua trajetória artístico-literária em São Paulo, SP, “espiou” o mundo, apontou as injustiças sociais e a hipocrisia burguesa, lutou pelos direitos do proletariado, decepcionou-se com o abismo entre seus ideais e a realidade comunista.
Pearl Sydenstricker Buck (americana – 1892/1973) iniciou-se no mundo das letras na China, onde viveu por quarenta anos, desde pequenina, na companhia dos pais missionários. Ativista, batalhou pela proteção das crianças desamparadas, pelos direitos civis dos afro-americanos e até mesmo contra os testes nucleares. Em razão do comunismo, abandonou a China e voltou para os Estados Unidos. No final da vida, o governo chinês negou-lhe o visto para visitar o cenário da maioria de suas obras. Pearl Buck foi a primeira mulher americana a ganhar o Prêmio Nobel em Literatura –1938.
Na minha juventude, tive Pagu por perto, pois a sanjoanense radicou-se em Santos, onde se projetou no mundo artístico e literário. Pagu era colaboradora do jornal A Tribuna; lia diariamente suas crônicas, sem imaginar que, no futuro, ela teria tanta importância na minha vida. Á época, gravei bem aquele apelido curtinho, frequentemente mencionado no meio estudantil. Quem nunca ouviu falar da JUC, que ensejava reuniões nas casas de família onde compareciam intelectuais e artistas? Pagu se fazia presente em toda parte e foi tão importante para os santistas que mereceu a Oficina Cultural Pagu, hoje localizada na Cadeia Velha, a mesma onde foi presa e torturada, em represália a sua participação nas manifestações dos trabalhadores. Pagu e eu nos banhamos nos mesmos mares, mares que alimentam devaneios e apaziguam a alma...
Não me recordo bem como Pearl entrou na minha vida, se por mim mesma ou por influência de meu futuro marido, fã dos autores estrangeiros. O fato é que me encantei com a mulher combativa, sonhadora, desejosa de melhorar o mundo, mulher amorável e de amores intensos que lhe custaram críticas e até um certo isolamento para viver em paz. Muitas de suas obras, mais de cem, têm caráter autobiográfico. Haja vista “A boa terra”, obra mais tarde transformada em filme pela MGM, que retrata o modus vivendi de uma família chinesa que experimenta todas as faces do sofrimento e do amor. Seca, pobreza, venda de filhos, conquista de status, respeito irrestrito ao homem da casa, submissão da mulher, concubinato dentro do próprio lar são alvo do espírito aguçado e sensível da escritora vaidosa que não dispensava o batom vermelho e os vestidos chineses.
Reavivando Pagu. Jamais me imaginei morando no interior, mas fiquei feliz que o destino me permitisse respirar os ares que Pagu primeiro respirou. Nas reuniões da Academia de Letras de São João da Boa Vista que passei a frequentar como convidada, ouvia, atenta, referências a Pagu. O cantinho dedicado a ela – Centro Cultural Pagu, onde os jovens podem pesquisar, ler, estudar, também me cativou. Meus laços com Pagu ganharam força quando, em 2006, tornei-me acadêmica. Precisando indicar meu patrono, não titubeei: Pagu – Patrícia Rehder Galvão, mãe de Rudá de Andrade, recém-falecido (3/2/09), filho de Oswald de Andrade, escritor e primeiro marido de Pagu, e Geraldo Galvão Ferraz, filho de Geraldo Ferraz, jornalista, segundo marido de Pagu, que muito a amou, aceitando e compreendendo suas excentricidades. Tendo escolhido Pagu para patrona, é natural que quisesse conhecer a fundo a militante, a escritora, a mulher de olhos misteriosos e maquilagem exagerada. Devorei tudo que dizia respeito à vida de Pagu, ficando particularmente impressionada com o trabalho exemplar de Lucia Teixeira Furlani- PAGU, Patrícia Galvão, livre na imaginação, no espaço e no tempo (Ed. UNISANTA , 4a edição,1999, Santos –SP). Uma das obras de Pagu, sob o pseudônimo de Mara Lobo, Parque industrial (1933), primeiro romance proletário brasileiro, é leitura obrigatória para se entender a autora.
Revisitando Pearl Buck. Em 2003 fiz a primeira viagem aos Estados Unidos, onde um de meus filhos mora há anos. A idéia de ir ao exterior sempre estivera ligada à Europa que, pra mim, combina com antiguidade, romance, tradição, cultura e tudo de bom para o espírito. Mas a vida, às vezes, toma rumos inesperados. Numa manhãzinha julina, no verão de 2003, abracei meu filho em solo americano.
- Mãe, traga alguma roupa mais quente- avisara ele dias antes.
-Ué, por quê? Não é verão aí?
- É sim, mas você vai precisar. Vamos para as montanhas.
Fiquei na mesma, mas logo entendi que deveria ser mais uma surpresa para mim, arte na qual meu menino é mestre. Então, sem mais perguntas, pus alguns agasalhos na bagagem. O casaco de couro já ia mesmo, pois, aqui, estávamos no inverno.
Alguns dias após minha chegada, tive que refazer a mala. Um dos destinos? NewYork. O outro? As montanhas. E, por favor, olha o agasalho! Partimos logo cedo. Controlei a curiosidade. Ser desmancha prazer não faz meu gênero. Horas e horas de estrada. Paradas para as “necessidades”. Comidae água numa geladeira portátil para evitar delongas. Após mais de dezhoras, sob garoa e frio, quase noite, montanhas lindíssimas e verdíssimas, as Green Mountains, chegamos ao destino surpresa – cidadezinha de poucas ruas, Danby, em Vermont, estado americano quasedivisa com o Canadá. Aliás, é de Vermont o mármore empregado nomonumento a George Washington, marco imponente que identifica Washington–D.C.
O corpo meio travado, ali estava eu diante de uma casa em reforma, enorme, quatro andares, branca, entradas por todos os lados, cercada por muito gramado; ao longe, o som de água corrente. Vizinhos? Apenas uma casinha velha com um residente mais velho ainda.
Entramos. Cuidado aqui e lá. Escadas estreitas e íngremes. Aposentos amplos. Paredes internas semidesmanchadas, deixando à mostra o recheio de lã de vidro. Janelões. Então...
- Mãe, aqui morou Pearl Buck, aquela que você gostava de ler, lembra?
- Pearl Buck? (mal conseguia falar).
- Filho, quanta coisa eu li dela! Mas...como você descobriu isso aqui?
A casa, patrimônio tombado “vendido” por preço simbólico, tem a reforma condicionada às normas da associação que zela pela preservaçãohistórica. Mas reformar aquilo tudo? Eu estava muda e mais muda fiquei quando meu filho mostrou-me o quarto em que Pearl dera o último suspiro.
E eu? Será que Deus me daria a chance de respirar os mesmos ares? De isolar-me ali, com meus pensamentos e escritos ou simplesmente com meu tricô? Pearl também era tricoteira...
Nem sei quanto tempo ficamos naquele cenário em que só havia uma luminária àbateria. O resto era breu. Rabisquei algumas impressões sob luz precária e zunido de pernilongos.
Depois fui extravasar minhas lágrimas a céu aberto. A chuva fina aplacou-me o coração tumultuado.
Partimos dali tarde da noite, rumo a New York. Porém, diante do mau tempo, pernoitamos em Burlington, maior cidade de Vermont. Foi a única vez em que lavei minha cabeça às três horas da manhã, após uma briga de quarenta minutos com a regulagem da água quente...
Volteia Danby em dois invernos. A reforma da casa que acolheu Pearl está adiantada. Há planos de colocar até um elevador, talvez pensando nas pernas desta mãe... Pertinho de lá, a cachoeira semicongelada já atrai os turistas e, recentemente, mereceu reportagem no New York Times. Para desespero de meu filho, a privacidade começa a ser prejudicada.
Mais motivada do que nunca, a partir dessa surpresa única, voltei a ler Pearl Buck e obras sobre sua vida, sua casa em Danby: The last charpter, por Beverly Rizzon, e A woman in conflict, por Nora Stirling, têm me fascinado. Pearl, mulher de muitos amores, dois casamentos e um relacionamento incomum com Theodore F. Harris, Ted, trinta anos mais novo, seu devoto até a morte. Ano retrasado conhecemos a penúltima moradia da escritora, uma fazenda enorme, em Bucks County, Pennsylvania.
O lugar belíssimo, aberto ao público, acolheu os restos mortais de Pearl. Seus objetos pessoais ali expostos parecem cheios de vida como o era sua dona, cuja exuberância encantou o mundo. Lá encontramos também uma das filhas adotivas de Pearl Buck, Janice, uma sessentona corpulenta e de pouca fala. Pearl teve uma única filha de sangue, Carol, retardada, ‘uma criança num corpo de mulher’.
Assim, tenho, para sempre, minha vida entrelaçada a essas duas imortais das Américas, mulheres avançadas no tempo: combativas, desafiadoras, envolventes, vaidosas, amadas, humanas. E corajosas até a morte: ambas lutaram contra o câncer, mas foram por ele derrotadas. Talvez a única batalha perdida nas suas trajetórias notáveis e com muitos pontos em comum.
Quem sabe aquela casa em Danby, VT, ainda venha a testemunhar, mais intimamente, parte da minha vida. Deus sabe, mas não me conta.
P.S.: Em agosto de 2010 visitei o último endereço de PAGU – Cemitério do Saboó, em Santos.
Simplesmente Pagú
sábado, 4 de dezembro de 2010
“Mulher de ferro com zonas erógenas e aparelho digestivo” (pág. 70). Assim se autodefine Patrícia Galvão, polêmica é pouco quando se fala dessa mulher que virou personagem de novela, de filmes, tema de música e é, sem dúvida, uma das figuras femininas mais intensas existentes na história da política e intelectualismo de nosso país. Embora na atualidade, quando se fala em ‘Pagu’, poucas sejam as pessoas que saibam efetivamente quem foi essa mulher: revolucionária, feminista, militante política, intelectual de grande produção e uma das representantes do modernismo brasileiro que, no centenário do seu nascimento (1910-2010), merece ter sua história revisitada.
Acredito que a melhor maneira de conhecermos um pouco dessa grande personagem é por ela mesma, e o livro “Paixão Pagu – a autobiografia precoce de Patrícia Galvão” faz isso de forma esplêndida, trata-se de uma autobiografia sem a pretensão inicial de o ser. Compilado a partir de uma carta dela destinada ao segundo marido, o escritor e jornalista Geraldo Ferraz, em 1940, sendo que suas ultimas linhas foram escritas ainda na prisão. A ultima das vinte e três que sofreu. O livro traz três introduções, dos filhos Rudá (dela com Oswald de Andrade) e Geraldo (com Geraldo Ferraz) e outra de David Jackson (especialista em literatura de língua portuguesa e, em particular, da obra de Patrícia Galvão). Além de fotos de alguns momentos da vida de Pagu, a obra traz uma cronologia, que ajuda o leitor a se situar melhor nos fatos que são narrados por ela.
O texto é forte, pois se trata de uma carta depoimento, ela usa essa forma para se “apresentar” ao marido Geraldo; é praticamente um convite para que ele sofra e viva com ela todas as suas lutas, acertos e erros. Assim, nada é suprimido, termos, palavras, sentimentos, pensamentos tudo vai brotando nas páginas deste livro onde o leitor se depara com várias sensações e, se não tem nenhum conhecimento prévio sobre Pagu, vai construindo uma personagem que, muitas vezes, nem parece ter sido real. São relatos de suas memórias, de quem era e de como se transformou no decorrer de sua luta, ao escrever a última linha, muito jovem ainda, com apenas trinta anos, parece ser a história de uma vida, tamanha a intensidade e a vivência dos fatos descritos. Em alguns momentos o leitor vai se chocar, pois Pagu é de uma autenticidade que incomoda, ela se apresenta como uma mulher simples a procura de um amor verdadeiro, na continuidade do relato percebemos que ela anseia por sentimentos verdadeiros, não somente um amor, ela busca uma pureza de atos que destoa do mundo pequeno burguês em que vive.
Moderna demais para um mundo de mente estreita, mulher forte num período em que as mulheres não tinham essa prerrogativa; num Brasil pré-moderno, onde elas não tinham voz nem vez. Assim, uma figura que foge as regras, burla as normas impostas pelo paternalismo do estado nacional, em plenos anos 30/40, só poderia passar para a história como irresponsável e exibicionista. Incompreendida pela família e o meio que a cerca, suas inquietações a levam de encontro com a antropofagia modernista e a produção intelectual. Busca a diversidade.
O livro vai relatando os compassos e descompassos dessa busca, um misto de ingenuidade e loucura, em seu texto existe uma mescla de poesia, romance e conto policial. Algo de trágico surge na historia que vai se desenrolando a cada frase, ela mesma diz que sempre achou sua vida trágica e, mesmo considerando que, ao escrever, essa vertente desapareça, ao leitor, algumas passagens são de uma crudeza que a tragédia salta aos olhos.
De início, essa carta-relatório fala de sua vida pessoal, desde as primeiras experiências sexuais aos doze anos, “o primeiro fato distintamente consciente da minha vida (...)” (pág. 53), como de suas impressões em relação ao mundo que a rodeava, onde tudo era uma inquietação, uma procura incessante por algo que não sabia identificar/compreender. Diz que, embora tenham morado muitos anos no Brás, um bairro tipicamente operário de São Paulo, não tinha interesses em relação às questões sociais, considerava-se muito egocêntrica neste período que antecede sua formação no curso normal, o mundo lhe era indiferente, existia uma rebeldia sem razão de ser. “Naquele tempo eu é que não compreendia o ambiente. Eu me lembro que me considerava muito boa e todos me achavam ruim.” (pág. 53). Buscava uma liberdade de ação. É nesse momento da vida que conhece Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, da qual Oswald irá se separar para ficar com Pagu. A narrativa é cheia de sentimentos fortes. A figura de Oswald de Andrade destoa do estereótipo construído, por ele mesmo naquele período e, conhecido até os dias atuais, “O palhaço da burguesia” (pág. 12). Pagu conheceu e fala dele como ninguém. Relata um inicio de relação conturbada e sem amor “Eu não amava Oswald. Só afinidades destrutivas nos ligavam.” (pg. 60)
Mesmo o conhecendo bem, em determinados momentos chegou a acreditar num amor a ser construído, mas sofre algumas decepções. Grávida e de casamento marcado para o dia seguinte, encontra Oswald num apartamento acompanhado de outra mulher. Tinham uma relação aberta, moderna e liberal, era essa imagem de mulher/companheira que ele passava para todos, inclusive para suas parceiras de sexo, uma permissividade indiferente a tudo, até de sentimentos. Mesmo compreendendo a poligamia como conseqüência da representação familiar reacionária e preconceituosa, Pagu sofreu. Seu sofrimento é racional, deixa claro que preferia isso à piedade “Sentia meu carinho atacado violentamente, mas havia a imensa gratidão pela brutalidade da franqueza. Ainda hoje o meu agradecimento vai para o homem que nunca me ofendeu com piedade.” (pág. 63). Ela queria amor, Oswald lhe tinha admiração.
Ao falar do filho Rudá o texto assume algo poético/filosófico. Ao mesmo tempo em que demonstra o amor materno que transborda, mostra todos os medos de uma mulher insegura, torturada num casamento sem amor e uma vida de aparências. Ela tem uma insatisfação com sua vida sem propósitos reais, intensos. É neste contexto de infelicidade pessoal que sua necessidade de luta surge. Através de seus contatos com a intelectualidade, parte para Montevidéu, depois para Buenos Aires onde tem programado um encontro com Prestes, deixando Oswald e o filho. Tinha pouco conhecimento sobre a doutrina marxista, mas procura em Prestes algumas respostas para suas buscas. Suas impressões em relação ao seleto grupo de intelectuais no qual é inserida na Argentina são bem inesperadas, pois ela diz que, apesar de viver entre eles, considerava-os sórdidos, alega que esperava muito mais do “setor mais vivo da América do Sul” (pág. 73).
Seu encontro com Prestes não acontece, volta ao Brasil por conta de problemas de saúde do filho, mas retoma seu interesse pelo comunismo, tendo Oswald como companheiro. Mesmo sem muito conhecimento e convicção, criaram o jornal Homem do povo que não sobreviveu por conta de processos e represálias. Fazem um auto-exilio e seguem juntos para Montevidéu onde Pagu, finalmente, se encontra com Luis Carlos Prestes. Um encontro sem planejamento, mas que veio a transformar a forma de pensar dessa mulher irrequieta. Ele “Fez-me ciente da verdade revolucionária e acenou-me com a fé nova. A alegria da fé nova. A infinita alegria de combater até o aniquilamento pela causa dos trabalhadores, pelo bem geral da humanidade.” (pág. 75). Esse encontro foi à mola que a impulsionou para a luta política. Queria ser comunista com a mesma convicção e honestidade de Prestes, porem vai sofrer do mesmo mal que a maioria dos intelectuais de esquerda, partir da teoria para a ação.
Sendo ela um espírito inquieto em eterna busca, essa paralisação diante da impossibilidade de ação ao invés de tirar lhe o ânimo, a angustiava. “Meia dúzia de comunistas vivendo em cafés. O que faziam estes comunistas conhecidos, se não saíam dos cafés?” (pág. 77). Tem seus primeiros contatos com o operariado em Santos, onde se depara com um ambiente pré-grevista orientado pelo sindicato da construção civil. Seu encontro com Herculano de Souza, um comunista ativo e bem articulado, fez com que se inserisse de corpo e alma na luta do partido. “Perturbada, desde esse dia, resolvi escravizar-me espontaneamente, violentamente. O marxismo. A luta de classes. A libertação dos trabalhadores. Por um mundo de verdade e de justiça. Lutar por isto valia uma vida. Valia a vida.” (pág. 81).
O comício na Praça da República em Santos, onde falaria pela primeira vez aos trabalhadores, é um marco em sua historia revolucionária. A polícia tinha membros disfarçados e infiltrados entre os operários presentes e, para impedir a realização do comício, começou a atirar na multidão. Herculano um dos líderes do movimento foi atingido nas costas, vindo a falecer momentos depois, mas não antes de pedir-lhe que continuasse o comício. As lembranças e descrição do ocorrido são tão fortes que o leitor cria uma imagem de guerra na memória, soldados atirando contra uma multidão armada apenas com a voz, sonhos e bandeiras vermelhas. A cavalaria toma conta da praça e Pagu é presa. Ela alega que muito do que se falou sobre sua participação foi por se tratar de uma comunista com origem pequeno burguesa que, ao ser presa, transformou tudo num fato que precisava ser explorado. Mas a descrição do seu discurso de improviso, falando da alma, das coisas que ela realmente acreditava e sentia, faz o leitor criar na memória cada segundo daquele momento de paixão, ideologia e sofrimento.
O exagero na divulgação de sua participação, fez com que a organização do partido circulasse um manifesto acentuando “a desordem provocada por mim, que eu tinha falado sem conhecimento ou autorização da organização, com intento provocador, etc.” (pág. 91). Mesmo sendo deliberadamente humilhada, aprova o manifesto, pois estava disposta a cumprir com todas as determinações do partido, acredita que neste caso, seu nome apareceu mais que o da organização. Mesmo na prisão, onde o sofrimento foi intenso, diz que a dor fora suplantada pela alegria proporcionada pela luta. O único tormento era não ter notícias dos companheiros.
Seu envolvimento com o partido vai sendo descrito de forma rápida, como se a vivência daqueles dias ainda estivesse presente a cada palavra. Suas prisões, as primeiras impressões sobre a doutrina do partido, o fim da sua vida pessoal, as armadilhas da polícia. Dando a impressão de que, finalmente, tenha conseguido colocar um fim na sua inquietação interna, de ter encontrado uma motivação para a vida, de estar feliz.
Todas as suas escolhas são pautadas pela organização, pelo partido. Para ser considerada proletária, se vê obrigada a abandonar, definitivamente, Oswald pra quem voltou após sair da prisão, e com isso abandona, também, o filho. “Sofri horrivelmente deixando o Rudá. Eu sei o que sofri com isto, mas não houve de minha parte a menor hesitação. Talvez não o amasse tanto como julgava. (...).” (pág. 95). Embora tenha feito a opção pelo partido, ela não consegue ter a aprovação da organização, nem a crença nas suas intenções e fidelidade à causa. Em alguns momentos diz ter se submetido a caprichos sexuais para conseguir as informações desejadas. Nada lhe pertencia, tudo era do partido, inclusive seu corpo, mesmo assim, não tinha o crédito almejado. Herança de sua condição pequeno burguesa.
Ao ler estas páginas tem-se a impressão que Pagu sofreu todas as dores do mundo, sempre movida pela fé na causa revolucionária. Em contrapartida nada recebe em troca por parte do partido. Em vários momentos o leitor irá se irritar com as escolhas feitas por ela, uma ingenuidade que revolta, ao mesmo tempo em que enternece pela fé depositada numa causa. Assim, algumas separações e retornos para Oswald são feitos por vontade da organização. São momentos de amor e dor, pois são encontros e desencontros com o filho e, por mais que deseje ficar, ela sabe que irá abandoná-lo ao menor sinal ou determinação do partido.
Mesmo a possibilidade de empregar-se num jornal lhe é negada, pois a organização não aceita seu trabalho intelectual, alegam que ela tem que aceitar a proletarização, para poder participar da luta do partido. Essa postura muda apenas no momento em que se torna operária de uma metalúrgica. “Com o meu avental xadrez, com as mãos feridas, o rosto negro de pó, fui considerada comunista sincera.” (pág. 99). O reconhecimento de sua dedicação, lhe rende a participação na Conferência Nacional do partido onde conhece os “chefes supremos” do Partido Comunista Brasileiro e da Internacional no Brasil. Fome, dor, desconforto e duas horas de sono em cinco dias de conferência. Tudo perfeitamente justificável pela causa ali defendida. “O proletariado brasileiro guiado por uma vanguarda daquela têmpera se libertaria, seria vitorioso, dentro de pouco tempo.” (pág. 102).
Mesmo já tendo sido reconhecida sua dedicação, sofre novo afastamento. Agora por conta de sua intelectualidade que é anterior a militância, a direção do partido procura afastar todos os que não possuem origem proletária, devido ao comportamento de um casal de intelectuais que se envolvem emocionalmente, indo contra as diretrizes do partido. Embora de espírito questionador, Pagu, mesmo discordando, aceita todas as determinações com resignação, toma tudo como o melhor a ser feito. Trabalha intelectualmente na clandestinidade, é nesse período que publica Parque industrial, considerado o primeiro romance proletário brasileiro, sob o pseudônimo de Mara Lobo.
Volta ao partido, agora inserida no “Comitê Fantasma, o organismo de máxima ilegalidade do partido.” (pág. 106). A descrição da movimentação desse braço da organização é no mínimo revoltante, seus membros são de índole duvidosa, e as informações solicitadas eram as mais incomuns e muitas vezes sem sentido, mas que para adquiri-las eram usados qualquer subterfúgio. Era o que se esperava dela, que usasse de todas as possibilidades para obter as informações necessárias ao partido, inclusive seu próprio corpo. “(...) eis-me membro do Comitê Fantasma, obrigada à dissimulação, à intriga, ao fingimento, a toda espécie de maquiavelismo repugnante...” (pág. 117). Mesmo se sentindo usada e não concordando com algumas coisas, a sua fé na luta era inabalável.
Depois de sofrer novo afastamento, sem explicação, decide juntamente com Oswald, sair do Brasil. A organização do partido, sabendo da sua viajem, a designa para ir à Rússia, com seus próprios recursos, fornecem apenas os documentos. Começa assim suas viagens pelo mundo. EUA, Japão, China e Rússia. No texto não há grandes relatos dessas viagens, apenas algumas impressões, algumas descritas como sem importância total. Não havia novidades para ela, parecia tudo igual no mundo, até chegar à China. Lá, sua percepção a respeito das condições de vida da população chinesa a atormenta, incendiando de vez seu desejo pela revolução, pela salvação dos oprimidos “É tudo tão miseravelmente absurdo, que eu nunca tive coragem de narrar o que encontrei ali. A mentira, a fabula grotesca me horroriza pelo ridículo e eu mesma penso que tudo que vi foi mentira.” (pág. 144). Sua experiência com as drogas é narrada neste período de total descrédito do mundo.
Ao chegar a Sibéria todo o mal estar adquirido na China se esvai, sua alegria ao entrar no país onde o ideal revolucionário, teoricamente, esta se concretizando, onde o comunismo iguala a todos num bem estar comum, faz com que sinta a vida soprar em seu rosto. Seu deslumbramento é instantâneo, embora consciente do seu fanatismo, chora diante do túmulo de Lênin. Percebe alguns sinais de que nem tudo é do jeito que se apresenta aos seus olhos, mas prefere crer no seu coração, naquilo que buscou durante tanto tempo. Necessitava crer que a revolução dera certo em algum lugar no mundo, para assim crer que no Brasil, mesmo com muitos tropeços, também viria a ser real. Porem acontece o que ela menos espera, se encontra com uma criança faminta, maltrapilha, com saúde visivelmente abalada, pedindo esmolas pelas ruas de Moscou.
Neste momento ela se depara com a realidade nua e crua, que seu fanatismo não deixava enxergar, não considera sua luta equivocada, mas percebe que nem todos os sonhos são possíveis. Sofre na alma a dor de não conseguir ver os ideais comunistas atingindo quem, no seu ponto de vista, deveriam ser os mais protegidos: as crianças. Por tudo que sofreu em sua vida, pelas crianças da China, que a abalaram profundamente, por seu filho, do qual não cuidara da forma que considerava ideal, pela fé incondicional na causa, grande é sua decepção. O leitor sofre com Pagu, chora e se revolta por ela. De repente, tudo que nossos olhos enxergam no transcorrer da leitura deste texto, explodem diante dos olhos dela, como personagem real da história, uma história sem rascunhos, sem cópias, única. Ela se vê consumida como pessoa, que tudo abandonou para viver a luta proletária, para concretizar os ideais comunistas. Todo este mundo caiu por terra ao ver aquela criança sem lar, sem comida, sem saúde diante dela. Impossível pra quem esta lendo sua narrativa, absorver toda a decepção sentida “Então a Revolução se fez para isto? Para que continuem a humilhação e a miséria das crianças?” (pág. 150). Ao leitor fica a angustia de saber que se trata do mundo real, e não uma ficção muito bem escrita.
Pagu não abandona o partido, passa a trabalhar com a produção intelectual, colabora com jornais e revistas ainda na França. È presa em manifestações de rua. Volta ao Brasil e, em 1937, depois de uma condenação de dois anos de prisão por causa do levante comunista, foge da prisão e é considerada perigosa e inimiga pública do governo Vargas. Embora este período não faça parte dos relatos, percebe-se que a vida toda ela foi contestadora, corajosa e apaixonada. Mulher forte que cometeu muitos erros na vida, mas todos cometidos em busca de grandes acertos, acertos estes que atingissem a muitos, ao mundo. Embora em sua escrita, perceba-se uma tendência minimalista, ela foi muito mais do que deixa transparecer ao falar de si mesma. Pagu é merecedora de fazer parte da história política nacional, mas a história real, sem retoques. Merece ser vista por ela mesma, para que se chegue a conclusões próprias, este relatório é um convite que ela faz ao marido Geraldo para conhecê-la melhor e, no momento que seus filhos decidem publicá-lo, é estendido a todos que se interessam pelos personagens que marcaram nossa história. Conheçam Patrícia Galvão ou, simplesmente Pagu.GALVÃO, Patrícia. Paixão Pagu: uma autobiografia precoce de Patrícia Galvão. Org.: Geraldo Galvão Ferraz, 1ª edição. Rio de Janeiro: Agir Editora, 2005.
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Simplesmente Pagu: Resenha do livro ''Paixão Pagu - A autobiografia precoce de Patricia Galvão'' publicado 28/10/2010 por eliane aparecida de oliveira em http://www.webartigos.com
Acredito que a melhor maneira de conhecermos um pouco dessa grande personagem é por ela mesma, e o livro “Paixão Pagu – a autobiografia precoce de Patrícia Galvão” faz isso de forma esplêndida, trata-se de uma autobiografia sem a pretensão inicial de o ser. Compilado a partir de uma carta dela destinada ao segundo marido, o escritor e jornalista Geraldo Ferraz, em 1940, sendo que suas ultimas linhas foram escritas ainda na prisão. A ultima das vinte e três que sofreu. O livro traz três introduções, dos filhos Rudá (dela com Oswald de Andrade) e Geraldo (com Geraldo Ferraz) e outra de David Jackson (especialista em literatura de língua portuguesa e, em particular, da obra de Patrícia Galvão). Além de fotos de alguns momentos da vida de Pagu, a obra traz uma cronologia, que ajuda o leitor a se situar melhor nos fatos que são narrados por ela.
O texto é forte, pois se trata de uma carta depoimento, ela usa essa forma para se “apresentar” ao marido Geraldo; é praticamente um convite para que ele sofra e viva com ela todas as suas lutas, acertos e erros. Assim, nada é suprimido, termos, palavras, sentimentos, pensamentos tudo vai brotando nas páginas deste livro onde o leitor se depara com várias sensações e, se não tem nenhum conhecimento prévio sobre Pagu, vai construindo uma personagem que, muitas vezes, nem parece ter sido real. São relatos de suas memórias, de quem era e de como se transformou no decorrer de sua luta, ao escrever a última linha, muito jovem ainda, com apenas trinta anos, parece ser a história de uma vida, tamanha a intensidade e a vivência dos fatos descritos. Em alguns momentos o leitor vai se chocar, pois Pagu é de uma autenticidade que incomoda, ela se apresenta como uma mulher simples a procura de um amor verdadeiro, na continuidade do relato percebemos que ela anseia por sentimentos verdadeiros, não somente um amor, ela busca uma pureza de atos que destoa do mundo pequeno burguês em que vive.
Moderna demais para um mundo de mente estreita, mulher forte num período em que as mulheres não tinham essa prerrogativa; num Brasil pré-moderno, onde elas não tinham voz nem vez. Assim, uma figura que foge as regras, burla as normas impostas pelo paternalismo do estado nacional, em plenos anos 30/40, só poderia passar para a história como irresponsável e exibicionista. Incompreendida pela família e o meio que a cerca, suas inquietações a levam de encontro com a antropofagia modernista e a produção intelectual. Busca a diversidade.
O livro vai relatando os compassos e descompassos dessa busca, um misto de ingenuidade e loucura, em seu texto existe uma mescla de poesia, romance e conto policial. Algo de trágico surge na historia que vai se desenrolando a cada frase, ela mesma diz que sempre achou sua vida trágica e, mesmo considerando que, ao escrever, essa vertente desapareça, ao leitor, algumas passagens são de uma crudeza que a tragédia salta aos olhos.
De início, essa carta-relatório fala de sua vida pessoal, desde as primeiras experiências sexuais aos doze anos, “o primeiro fato distintamente consciente da minha vida (...)” (pág. 53), como de suas impressões em relação ao mundo que a rodeava, onde tudo era uma inquietação, uma procura incessante por algo que não sabia identificar/compreender. Diz que, embora tenham morado muitos anos no Brás, um bairro tipicamente operário de São Paulo, não tinha interesses em relação às questões sociais, considerava-se muito egocêntrica neste período que antecede sua formação no curso normal, o mundo lhe era indiferente, existia uma rebeldia sem razão de ser. “Naquele tempo eu é que não compreendia o ambiente. Eu me lembro que me considerava muito boa e todos me achavam ruim.” (pág. 53). Buscava uma liberdade de ação. É nesse momento da vida que conhece Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, da qual Oswald irá se separar para ficar com Pagu. A narrativa é cheia de sentimentos fortes. A figura de Oswald de Andrade destoa do estereótipo construído, por ele mesmo naquele período e, conhecido até os dias atuais, “O palhaço da burguesia” (pág. 12). Pagu conheceu e fala dele como ninguém. Relata um inicio de relação conturbada e sem amor “Eu não amava Oswald. Só afinidades destrutivas nos ligavam.” (pg. 60)
Mesmo o conhecendo bem, em determinados momentos chegou a acreditar num amor a ser construído, mas sofre algumas decepções. Grávida e de casamento marcado para o dia seguinte, encontra Oswald num apartamento acompanhado de outra mulher. Tinham uma relação aberta, moderna e liberal, era essa imagem de mulher/companheira que ele passava para todos, inclusive para suas parceiras de sexo, uma permissividade indiferente a tudo, até de sentimentos. Mesmo compreendendo a poligamia como conseqüência da representação familiar reacionária e preconceituosa, Pagu sofreu. Seu sofrimento é racional, deixa claro que preferia isso à piedade “Sentia meu carinho atacado violentamente, mas havia a imensa gratidão pela brutalidade da franqueza. Ainda hoje o meu agradecimento vai para o homem que nunca me ofendeu com piedade.” (pág. 63). Ela queria amor, Oswald lhe tinha admiração.
Ao falar do filho Rudá o texto assume algo poético/filosófico. Ao mesmo tempo em que demonstra o amor materno que transborda, mostra todos os medos de uma mulher insegura, torturada num casamento sem amor e uma vida de aparências. Ela tem uma insatisfação com sua vida sem propósitos reais, intensos. É neste contexto de infelicidade pessoal que sua necessidade de luta surge. Através de seus contatos com a intelectualidade, parte para Montevidéu, depois para Buenos Aires onde tem programado um encontro com Prestes, deixando Oswald e o filho. Tinha pouco conhecimento sobre a doutrina marxista, mas procura em Prestes algumas respostas para suas buscas. Suas impressões em relação ao seleto grupo de intelectuais no qual é inserida na Argentina são bem inesperadas, pois ela diz que, apesar de viver entre eles, considerava-os sórdidos, alega que esperava muito mais do “setor mais vivo da América do Sul” (pág. 73).
Seu encontro com Prestes não acontece, volta ao Brasil por conta de problemas de saúde do filho, mas retoma seu interesse pelo comunismo, tendo Oswald como companheiro. Mesmo sem muito conhecimento e convicção, criaram o jornal Homem do povo que não sobreviveu por conta de processos e represálias. Fazem um auto-exilio e seguem juntos para Montevidéu onde Pagu, finalmente, se encontra com Luis Carlos Prestes. Um encontro sem planejamento, mas que veio a transformar a forma de pensar dessa mulher irrequieta. Ele “Fez-me ciente da verdade revolucionária e acenou-me com a fé nova. A alegria da fé nova. A infinita alegria de combater até o aniquilamento pela causa dos trabalhadores, pelo bem geral da humanidade.” (pág. 75). Esse encontro foi à mola que a impulsionou para a luta política. Queria ser comunista com a mesma convicção e honestidade de Prestes, porem vai sofrer do mesmo mal que a maioria dos intelectuais de esquerda, partir da teoria para a ação.
Sendo ela um espírito inquieto em eterna busca, essa paralisação diante da impossibilidade de ação ao invés de tirar lhe o ânimo, a angustiava. “Meia dúzia de comunistas vivendo em cafés. O que faziam estes comunistas conhecidos, se não saíam dos cafés?” (pág. 77). Tem seus primeiros contatos com o operariado em Santos, onde se depara com um ambiente pré-grevista orientado pelo sindicato da construção civil. Seu encontro com Herculano de Souza, um comunista ativo e bem articulado, fez com que se inserisse de corpo e alma na luta do partido. “Perturbada, desde esse dia, resolvi escravizar-me espontaneamente, violentamente. O marxismo. A luta de classes. A libertação dos trabalhadores. Por um mundo de verdade e de justiça. Lutar por isto valia uma vida. Valia a vida.” (pág. 81).
O comício na Praça da República em Santos, onde falaria pela primeira vez aos trabalhadores, é um marco em sua historia revolucionária. A polícia tinha membros disfarçados e infiltrados entre os operários presentes e, para impedir a realização do comício, começou a atirar na multidão. Herculano um dos líderes do movimento foi atingido nas costas, vindo a falecer momentos depois, mas não antes de pedir-lhe que continuasse o comício. As lembranças e descrição do ocorrido são tão fortes que o leitor cria uma imagem de guerra na memória, soldados atirando contra uma multidão armada apenas com a voz, sonhos e bandeiras vermelhas. A cavalaria toma conta da praça e Pagu é presa. Ela alega que muito do que se falou sobre sua participação foi por se tratar de uma comunista com origem pequeno burguesa que, ao ser presa, transformou tudo num fato que precisava ser explorado. Mas a descrição do seu discurso de improviso, falando da alma, das coisas que ela realmente acreditava e sentia, faz o leitor criar na memória cada segundo daquele momento de paixão, ideologia e sofrimento.
O exagero na divulgação de sua participação, fez com que a organização do partido circulasse um manifesto acentuando “a desordem provocada por mim, que eu tinha falado sem conhecimento ou autorização da organização, com intento provocador, etc.” (pág. 91). Mesmo sendo deliberadamente humilhada, aprova o manifesto, pois estava disposta a cumprir com todas as determinações do partido, acredita que neste caso, seu nome apareceu mais que o da organização. Mesmo na prisão, onde o sofrimento foi intenso, diz que a dor fora suplantada pela alegria proporcionada pela luta. O único tormento era não ter notícias dos companheiros.
Seu envolvimento com o partido vai sendo descrito de forma rápida, como se a vivência daqueles dias ainda estivesse presente a cada palavra. Suas prisões, as primeiras impressões sobre a doutrina do partido, o fim da sua vida pessoal, as armadilhas da polícia. Dando a impressão de que, finalmente, tenha conseguido colocar um fim na sua inquietação interna, de ter encontrado uma motivação para a vida, de estar feliz.
Todas as suas escolhas são pautadas pela organização, pelo partido. Para ser considerada proletária, se vê obrigada a abandonar, definitivamente, Oswald pra quem voltou após sair da prisão, e com isso abandona, também, o filho. “Sofri horrivelmente deixando o Rudá. Eu sei o que sofri com isto, mas não houve de minha parte a menor hesitação. Talvez não o amasse tanto como julgava. (...).” (pág. 95). Embora tenha feito a opção pelo partido, ela não consegue ter a aprovação da organização, nem a crença nas suas intenções e fidelidade à causa. Em alguns momentos diz ter se submetido a caprichos sexuais para conseguir as informações desejadas. Nada lhe pertencia, tudo era do partido, inclusive seu corpo, mesmo assim, não tinha o crédito almejado. Herança de sua condição pequeno burguesa.
Ao ler estas páginas tem-se a impressão que Pagu sofreu todas as dores do mundo, sempre movida pela fé na causa revolucionária. Em contrapartida nada recebe em troca por parte do partido. Em vários momentos o leitor irá se irritar com as escolhas feitas por ela, uma ingenuidade que revolta, ao mesmo tempo em que enternece pela fé depositada numa causa. Assim, algumas separações e retornos para Oswald são feitos por vontade da organização. São momentos de amor e dor, pois são encontros e desencontros com o filho e, por mais que deseje ficar, ela sabe que irá abandoná-lo ao menor sinal ou determinação do partido.
Mesmo a possibilidade de empregar-se num jornal lhe é negada, pois a organização não aceita seu trabalho intelectual, alegam que ela tem que aceitar a proletarização, para poder participar da luta do partido. Essa postura muda apenas no momento em que se torna operária de uma metalúrgica. “Com o meu avental xadrez, com as mãos feridas, o rosto negro de pó, fui considerada comunista sincera.” (pág. 99). O reconhecimento de sua dedicação, lhe rende a participação na Conferência Nacional do partido onde conhece os “chefes supremos” do Partido Comunista Brasileiro e da Internacional no Brasil. Fome, dor, desconforto e duas horas de sono em cinco dias de conferência. Tudo perfeitamente justificável pela causa ali defendida. “O proletariado brasileiro guiado por uma vanguarda daquela têmpera se libertaria, seria vitorioso, dentro de pouco tempo.” (pág. 102).
Mesmo já tendo sido reconhecida sua dedicação, sofre novo afastamento. Agora por conta de sua intelectualidade que é anterior a militância, a direção do partido procura afastar todos os que não possuem origem proletária, devido ao comportamento de um casal de intelectuais que se envolvem emocionalmente, indo contra as diretrizes do partido. Embora de espírito questionador, Pagu, mesmo discordando, aceita todas as determinações com resignação, toma tudo como o melhor a ser feito. Trabalha intelectualmente na clandestinidade, é nesse período que publica Parque industrial, considerado o primeiro romance proletário brasileiro, sob o pseudônimo de Mara Lobo.
Volta ao partido, agora inserida no “Comitê Fantasma, o organismo de máxima ilegalidade do partido.” (pág. 106). A descrição da movimentação desse braço da organização é no mínimo revoltante, seus membros são de índole duvidosa, e as informações solicitadas eram as mais incomuns e muitas vezes sem sentido, mas que para adquiri-las eram usados qualquer subterfúgio. Era o que se esperava dela, que usasse de todas as possibilidades para obter as informações necessárias ao partido, inclusive seu próprio corpo. “(...) eis-me membro do Comitê Fantasma, obrigada à dissimulação, à intriga, ao fingimento, a toda espécie de maquiavelismo repugnante...” (pág. 117). Mesmo se sentindo usada e não concordando com algumas coisas, a sua fé na luta era inabalável.
Depois de sofrer novo afastamento, sem explicação, decide juntamente com Oswald, sair do Brasil. A organização do partido, sabendo da sua viajem, a designa para ir à Rússia, com seus próprios recursos, fornecem apenas os documentos. Começa assim suas viagens pelo mundo. EUA, Japão, China e Rússia. No texto não há grandes relatos dessas viagens, apenas algumas impressões, algumas descritas como sem importância total. Não havia novidades para ela, parecia tudo igual no mundo, até chegar à China. Lá, sua percepção a respeito das condições de vida da população chinesa a atormenta, incendiando de vez seu desejo pela revolução, pela salvação dos oprimidos “É tudo tão miseravelmente absurdo, que eu nunca tive coragem de narrar o que encontrei ali. A mentira, a fabula grotesca me horroriza pelo ridículo e eu mesma penso que tudo que vi foi mentira.” (pág. 144). Sua experiência com as drogas é narrada neste período de total descrédito do mundo.
Ao chegar a Sibéria todo o mal estar adquirido na China se esvai, sua alegria ao entrar no país onde o ideal revolucionário, teoricamente, esta se concretizando, onde o comunismo iguala a todos num bem estar comum, faz com que sinta a vida soprar em seu rosto. Seu deslumbramento é instantâneo, embora consciente do seu fanatismo, chora diante do túmulo de Lênin. Percebe alguns sinais de que nem tudo é do jeito que se apresenta aos seus olhos, mas prefere crer no seu coração, naquilo que buscou durante tanto tempo. Necessitava crer que a revolução dera certo em algum lugar no mundo, para assim crer que no Brasil, mesmo com muitos tropeços, também viria a ser real. Porem acontece o que ela menos espera, se encontra com uma criança faminta, maltrapilha, com saúde visivelmente abalada, pedindo esmolas pelas ruas de Moscou.
Neste momento ela se depara com a realidade nua e crua, que seu fanatismo não deixava enxergar, não considera sua luta equivocada, mas percebe que nem todos os sonhos são possíveis. Sofre na alma a dor de não conseguir ver os ideais comunistas atingindo quem, no seu ponto de vista, deveriam ser os mais protegidos: as crianças. Por tudo que sofreu em sua vida, pelas crianças da China, que a abalaram profundamente, por seu filho, do qual não cuidara da forma que considerava ideal, pela fé incondicional na causa, grande é sua decepção. O leitor sofre com Pagu, chora e se revolta por ela. De repente, tudo que nossos olhos enxergam no transcorrer da leitura deste texto, explodem diante dos olhos dela, como personagem real da história, uma história sem rascunhos, sem cópias, única. Ela se vê consumida como pessoa, que tudo abandonou para viver a luta proletária, para concretizar os ideais comunistas. Todo este mundo caiu por terra ao ver aquela criança sem lar, sem comida, sem saúde diante dela. Impossível pra quem esta lendo sua narrativa, absorver toda a decepção sentida “Então a Revolução se fez para isto? Para que continuem a humilhação e a miséria das crianças?” (pág. 150). Ao leitor fica a angustia de saber que se trata do mundo real, e não uma ficção muito bem escrita.
Pagu não abandona o partido, passa a trabalhar com a produção intelectual, colabora com jornais e revistas ainda na França. È presa em manifestações de rua. Volta ao Brasil e, em 1937, depois de uma condenação de dois anos de prisão por causa do levante comunista, foge da prisão e é considerada perigosa e inimiga pública do governo Vargas. Embora este período não faça parte dos relatos, percebe-se que a vida toda ela foi contestadora, corajosa e apaixonada. Mulher forte que cometeu muitos erros na vida, mas todos cometidos em busca de grandes acertos, acertos estes que atingissem a muitos, ao mundo. Embora em sua escrita, perceba-se uma tendência minimalista, ela foi muito mais do que deixa transparecer ao falar de si mesma. Pagu é merecedora de fazer parte da história política nacional, mas a história real, sem retoques. Merece ser vista por ela mesma, para que se chegue a conclusões próprias, este relatório é um convite que ela faz ao marido Geraldo para conhecê-la melhor e, no momento que seus filhos decidem publicá-lo, é estendido a todos que se interessam pelos personagens que marcaram nossa história. Conheçam Patrícia Galvão ou, simplesmente Pagu.GALVÃO, Patrícia. Paixão Pagu: uma autobiografia precoce de Patrícia Galvão. Org.: Geraldo Galvão Ferraz, 1ª edição. Rio de Janeiro: Agir Editora, 2005.
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Simplesmente Pagu: Resenha do livro ''Paixão Pagu - A autobiografia precoce de Patricia Galvão'' publicado 28/10/2010 por eliane aparecida de oliveira em http://www.webartigos.com
Fonte: http://www.webartigos.com/articles/50673/1/Simplesmente-Pagu-Resenha-do-livro-Paixao-Pagu---A-autobiografia-precoce-de-Patricia-Galvao/pagina1.html#ixzz17CHOSp2W
Mulher Paixão
Mulher paixão
Além de militante comunista e feminista, a escritora Pagu foi uma mulher que viveu e enfrentou sua época com toda a intensidade
O poeta e ensaísta mexicano Octavio Paz (1914-1998) costumava escrever que a vida de certas pessoas se confunde com a época e o lugar em que viveram. Em alguns casos, essa identificação é tão intensa que fica difícil saber quanto dos acontecimentos foram influenciados por essa pessoa e quanto dessa pessoa foi influenciada pelos acontecimentos.
Acredito que a brasileira Patrícia Rehder Galvão, nascida em São João da Boa Vista (SP), aos 9 dias de junho de 1910, e falecida em 12 de dezembro de 1962, na cidade de Santos (SP), é um exemplo de mulher que marcou e foi marcada, intensamente, por sua época. Pagu, como ficou conhecida, recebeu esse apelido do poeta antropofágico Raul Bopp, que pensava, quando a conheceu, que ela se chamava Patrícia Goulart. Dedicou a ela um poema em que se pode ler: “Você tem corpo de cobra/Onduladinho e indolente/Dum veneninho gostoso/Que dói na alma da gente”. Pagu foi militante comunista, cronista de jornal e uma das primeiras feministas no Brasil. Escandalizou a família conservadora e a elite paulistana da época (1920) quando assumiu, aos 11 anos, seu namoro com o cineasta Olympio Guilherme. Foi escritora de romance, gênero em que é reconhecida como a mulher pioneira a introduzir o romance proletário no Brasil com a obra intitulada Parque Industrial (1933). Esse romance foi relançado em 1994 e traduzido nos Estados Unidos pela Universidade de Nebraska sob a responsabilidade do pesquisador brasilianista David Jackson.
Aos 18 anos, ela aderiu ao Movimento Antropofágico, participando da Revista de Antropofagia em sua 2ª edição. Pagu assinou uma das primeiras colunas de TV do país, no jornal A Tribuna, adotando o pseudônimo Gim. Inaugurou, como mulher, a primeira coluna de histórias em quadrinhos com Malakabeça, Fanikita e Kabeluda. Foi a primeira tradutora no Brasil de escritores como James Joyce, Mallarmé, Octavio Paz, Beckett, Bretton, Vallery e outros. Na ficção, David Jackson coloca Pagu ao lado de escritores do porte de George Orwell e Aldous Huxley. Jackson encerra seu prefácio do livro Paixão Pagu: a Autobiografia Precoce de Patrícia Galvão da seguinte maneira: “Mulher inteligente, independente, audaciosa, insubordinada, num Brasil ainda pouco modernista para tão imensa oferta”.
Perseguida e torturada pelo Estado Novo
Para fazer jus à definição, Patrícia Galvão pagou um preço muito alto durante toda sua vida. A mão pesada da ditadura de Getúlio Vargas caiu com toda força e crueldade sobre essa mulher que nunca se dobrou ou fez concessões. Pagu colocou como poucos toda sua força e sua paixão naquilo que fez. Suas decisões sempre foram marcadas pela radicalidade das decisões apaixonadas. Pagu dedicou suas melhores energias à militância política. Fez isso desde seu ingresso, ainda muito jovem, no Partido Comunista Brasileiro – que teve a honra de fazer pelas mãos do lendário dirigente Luiz Carlos Prestes – até o seu total desencanto com o ideário revolucionário comunista. Desencanto que aconteceu em plena Praça Vermelha no coração de Moscou, na Rússia. Foi quando viu, e não conseguiu entender, como uma criança podia estar pedindo esmolas no “altar” da revolução que se fez em nome da redenção da classe operária. Perguntou-se, então: “A revolução se fez para isto? Para que continuem a humilhação e a miséria das crianças?”.
Sua condição de inimiga política do Estado Novo fez com que fosse presa 23 vezes pela ditadura de Getúlio Vargas. Da última prisão, saiu viva por um detalhe. Mesmo muito jovem – tinha na época apenas 30 anos –, sua saúde estava muito debilitada em função das péssimas condições da prisão e das violentas torturas sofridas.
A intensidade da vida e da obra de Pagu pode ser avaliada por meio da sua repercussão no cinema, em filmes como Eternamente Pagu (1988) e em documentários como Eh Pagu Eh (1982) e Patrícia Galvão: Livre na Imaginação, no Espaço e no Tempo (2001).
Na literatura, ganhou vários textos e livros sobre sua vida. Em seriados na TV, seu personagem apareceu em Um Só Coração (Globo, 2004). Foi musa retratada em desenhos e pinturas de Cândido Portinari e Di Cavalcanti. Também inspirou a música na composição Pagu, de Rita Lee e Zélia Duncan, e mais tarde na voz de Maria Rita.
Enfim, esta modernista é um ótimo exemplo de uma intelectual e artista que conseguiu ultrapassar épocas e gerações. Seu legado, mesmo que pouco conhecido nos ambientes mais embrutecidos de certa academia e intelectualidade copista, recebe uma atenção especial daqueles e daquelas que continuam em busca de “algo de novo sob o sol” na cultura brasileira e latino-americana.
O poeta Carlos Drummond de Andrade não passou imune ao charme de Pagu e se refere a ela como uma mulher que imprimiu um colorido todo especial para a luta política da época, bem como para o movimento modernista de 1922. Pouco antes de morrer, o teatrólogo maldito Plínio Marcos se referiu à Pagu como uma espécie de anjo “indisciplinado e rebelde” que veio a este mundo para nos incomodar.
Desencanto com o comunismo
Bendito incômodo este produzido por Pagu. Numa época em que ainda vemos tanta imitação na arte, na filosofia, na política e na educação, nada mais oportuno que olhar para o exemplo da mulher que soube, como poucas, viver sua época com toda a intensidade que suas forças lhe permitiram. Patrícia Galvão nunca deixou de assumir com dignidade e radicalidade suas ideias. Após sua permanência na União Soviética como militante revolucionária internacional, começou a se dar conta de que grande parte de tudo aquilo que ela combatia no regime capitalista era, também, muito presente no regime socialista que ela adotou como bandeira e religião. Ficou chocada com as intrigas, as traições, as delações, as perseguições e com os julgamentos e as execuções sumárias que viu acontecerem no interior do partido comunista ao qual ela servia como um fiel soldado.
Em uma carta escrita durante a prisão, ela relatou experiências e desencantos com o ideário político que adotou incondicionalmente durante toda sua vida. Na carta remetida em 1940 para seu então marido, o jornalista Geraldo Ferraz, Pagu faz um inventário e um relatório ao mesmo tempo minucioso e dramático de sua vida. Não ficam fora desta carta suas relações afetivas. Dedica uma especial atenção a sua relação tumultuada e ao mesmo tempo muito companheira e cúmplice com o antropofágico Oswald de Andrade, com quem foi casada e teve o filho Rudá Andrade.
A leitura dessa carta-biografia pode nos mostrar muito mais da Patrícia Galvão. Pode nos levar a conhecer uma mulher para além da militante comunista, da feminista engajada, da operária de fábricas na década de 30. Revela-nos alguém capaz de resumir sua vida dizendo: “Sempre achei trágica minha vida. Absurdamente trágica. Hoje parece apenas que lhe conto que fui à quitanda comprar laranjas”.
Como santista de coração, amava o mar de Santos, cidade que escolheu para viver seus últimos dias. Foi uma mãe capaz de morrer pela felicidade do filho; uma mulher capaz de dividir meia fatia de pão com uma criança faminta ou caminhar horas para encontrar um amigo para conversar.
Pagu foi uma lutadora até o final de seus dias. Tentou suicídio no desespero de uma doença incurável. Após resignar-se, começou a lutar bravamente contra o câncer que lhe ceifou a vida aos 52 anos.
Termino este texto com a frase com que Pagu inicia sua carta-depoimento e como forma de um convite a sua leitura: “Não escreverei aqui sobre a morte ou sobre mortes. Quero escrever sobre a vida, pois há pequeninas flores sob as esbeltas palmeiras, é uma noite com uma certa aragem respingada finíssima e fria e o visitante foi embora...”.
Professor da UFSM e escritor. Pós-doutor em Antropofagia Cultural Brasileira. Coordena o Núcleo Kitanda: Educação e Intercultura – CNPq/UFSM
http://www.clicrbs.com.br/dsm/rs/impressa/4,1304,3099713,15848
Modernismo - Parque Industrial
[...]
Na grande penitenciária social os teares se elevam e marcham esgoelando. Bruna está com sono. Estivera num baile até tarde. Pára e aperta com raiva os olhos ardentes. Abre a boca cariada, boceja. Os cabelos toscos estão polvilhados de seda.
- Puxa! Que este domingo não durou… Os ricos podem dormir à vontade.
- Bruna! Você se machuca. Olha as tranças!
É o seu companheiro de perto.
O chefe da oficina se aproxima, vagaroso, carrancudo.
- Eu já falei que não quero prosa aqui!
- Ela podia se machucar...
- Malandros! É por isso que o trabalho não rende! Sua vagabunda!
Bruna desperta. O moço abaixa a cabeça revoltada. É preciso calar a boca! Assim, em todos os setores proletários, todos os dias, todas as semanas, todos os anos.
Nos salões dos ricos, os poetas lacaios declamam:
Como é lindo o teu tear!
[...]
Novamente as ruas se tingem de cores proletárias. É a saída da fábrica. O apito escapa da chaminé gigante, libertando uma humanidade inteira que se escoa para as ruas da miséria. Um pedaço da fábrica regressa ao cortiço.
Patrícia Galvão (Pagú)
O que li
Diz o velho provérbio popular que "para um bom entendedor, poucas palavras bastam". E como bastam! Ainda mais quando ditas com sabedoria, conhecimento de causa e com a eficiência de quem sabe verbalizar de forma sucinta situações recheadas de particularidades, a exemplo de uma das principais mazelas sociais sempre presente nas organizações humanas: a exploração da maioria pobre e mais fraca pela minoria rica e mais poderosa, tema este exposto no livro "Parque Industrial", da escritora, poetisa, desenhista e ativista cultural e política Patrícia Galvão (a Pagú - nome de destaque da chamada "Segunda Geração Modernista" brasileira), do qual reproduzimos um pequeno "grande" trecho; pequeno no tamanho, mas gigante na mensagem que consegue passar ao leitor.
Considerado uma jóia da literatura brasileira do século XX, "Parque Industrial" foi escrito em 1932 e publicado pela primeira vez em 1933, numa edição de tiragem e divulgação pequenas financiada pelo escritor Oswald de Andrade. Primeiro romance proletário brasileiro, o livro mostra a realidade vivida pelos excluídos da sociedade paulistana, vítimas de uma desigualdade social que (tal como acontece nos dias atuais) massacrava e humilhava as camadas populares e privilegiava uns poucos detentores do poder político e econômico.
Por ser um romance de caráter extremamente político-social, e em razão de atrito com o Partido Comunista, ao qual era filiada e no qual enfrentava restrições devido à sua origem pequeno-burguesa, a autora foi impedida de assinar o livro com o seu nome verdadeiro, valendo-se, para isso, do pseudônimo "Mara Lobo", fato que não tirou o brilho da iniciativa.
Apresentada a obra, falemos mais sobre a autora Patrícia Galvão, nome também pouco falado nos livros didáticos e nas aulas de Literatura Brasileira em todo o país, mas de grande movimentação e produção, tanto nos meios literário e cultural quanto na vida política brasileira.
Nascida em 9 de junho de 1910, em São João da Boa Vista /SP, Patrícia Rehder Galvão tinha apenas 12 anos quando, sob o comando dos escritores Oswald e Mário de Andrade, o Teatro Municipal de São Paulo entrou para a história como sede de um movimento artístico-literário que marcou uma mudança radical na forma de produzir arte e literatura no País: a Semana de Arte Moderna realizada em fevereiro de 1922 - marco inicial do Modernismo brasileiro. Seis anos depois (em 1928), então com 18 anos de idade, a jovem poetisa recebeu do escritor Raul Bopp o apelido de "Pagú" e foi por ele introduzida no salão da Alameda Barão de Piracicaba, nas reuniões oferecidas pelo escritor e poeta Oswald de Andrade e pela artista plástica Tarsila do Amaral - "o casal mais admirado e requisitado da sociedade paulistana".
Sob a influência do casal, de quem se tornou grande e inseparável amiga, Pagú participou ativamente do movimento antropofágico liderado por Oswald e marcado pelo radicalismo dos princípios da primeira fase do Modernismo brasileiro de rompimento com o passado e com toda e qualquer regra academicista na produção literária. Dois anos depois (em 1930), casou-se com Oswald (sem perder a amizade de Tarsila) e da relação nasceu o filho Rudá de Andrade. No ano seguinte (1931), filiou-se ao Partido Comunista; editou, junto com Oswald de Andrade, o jornal "O Homem do Povo" (onde assinou a coluna feminista "A Mulher do Povo"), e acabou sendo presa pela primeira durante participação em comício do partido e dos estivadores, em Santos.
Em 1933 Patrícia Galvão publicou o seu primeiro romance ("Parque Industrial"), sob o pseudônimo de Mara Lobo, e depois saiu em viagem pelo mundo, passando pelos EUA, Japão, Polônia, Alemanha, URSS e França. Em 1935, sob a identidade de Leonnie, foi presa em Paris (como comunista estrangeira) e repatriada para o Brasil, onde começou a trabalhar no jornal "A Platéia". Separada definitivamente de Oswald de Andrade, foi novamente presa e torturada, ficando na cadeia por cinco anos. Ao sair da prisão (em 1940), rompeu com o Partido Comunista; casou-se com o jornalista Geraldo Ferraz, e iniciou intensa participação na imprensa, atuando sobretudo como crítica de arte. Em 1945 saiu o seu segundo romance: "A Famosa Revista", escrito em parceria com Geraldo Ferraz.
Dedicando-se à crítica literária, teatral e de televisão, à produção literária ((escreveu também contos policiais, sob o pseudônimo King Shelter, publicados na revista Detective, dirigida pelo dramaturgo Nelson Rodrigues) e à militância política, Pagú destacou-se, sobretudo, pela coragem de defender seus ideais, característica que lhe rendeu vinte e três prisões, além de muita perseguição, humilhação e tortura.
Aos 52 anos de idade, Patrícia Galvão morreu no dia 12 de dezembro de 1962, pouco tempo depois de ser submetida, em Paris, a uma cirurgia para retirada de um câncer.
Sobre sua principal obra, a crítica especializada escreveu:
"Parque Industrial, que Pagú escreveu ainda muito jovem, foi um marco: é considerado o primeiro romance proletário brasileiro. O livro adentra, com todas as cores reais, o cotidiano das mulheres operárias da década de 30 na região do Brás, em São Paulo. No Parque Industrial de Pagú estão os dias cansados, as ruas, as casas, os quartos, os sonhos das operárias. Lá está a trabalhadora grávida, que perde o amante, o emprego, o filho, a liberdade [...] Pagú mostra o despertar das operárias para a luta. 'O Brás acorda. A revolta é alegre. A greve, uma festa!'. Depois, mostra a repressão. No Parque Industrial, Pagú se veste de todas aquelas mulheres. Ela é Rosinha Lituana, dirigindo e encorajando as colegas. Ela é a esperança de Otávia, é a dor de Corina."
Grygena Targino GRYGENA TARGINO É FORMADA EM PEDAGOGIA PELA UFPB E ALUNA DOS CURSOS DE LETRAS (UFPB) E DE ESPECIALIZAÇÃO EM PSICOPEDAGOGIA (UNIPÊ)jg.leituraobrigatoria@hotmail.com
http://www.auniao.pb.gov.br/v2/index.php?option=com_content&task=view&id=38603&Itemid=55
Olhos moles, alma forte
{dezembro de 2010}
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Ela tem lugar garantido na lista das figuras femininas mais importantes do século passado. De aparência e personalidade marcantes, era “a nova mulher brasileira”, segundo o poeta Augusto de Campos. Além de causar burburinho entre o grupo dos modernistas, do qual foi proclamada musa, entregou-se à vida de corpo e alma.
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Enquanto artistas e intelectuais proclamavam o Modernismo brasileiro, Patrícia Galvão era apenas uma garota de 12 anos. É verdade que já fugia dos padrões do lugar em que vivia ao falar palavrões, usar transparências e cabelos eriçados. Mas, apesar de não muito longe do bairro industrial do Brás, a Semana de Arte Moderna de 1922 acontecia alheia à menina de olhar distante. Seis anos se passariam até que ela estivesse entre eles.
A defesa então era pela Antropofagia: que a cultura brasileira não ficasse isolada, abandonada ao tempo, mas continuasse se renovando com as influências estrangeiras. A normalista que enchia cadernos de escritos e publicava artigos no jornal do bairro foi apresentada ao grupo pelo poeta Raul Bopp. E logo apadrinhada pelo casal Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. Moça firme dos olhos caídos, lábios pintados de batom escuro, quase roxo, tornou-se musa do movimento. Pagu tem os olhos moles / uns olhos de fazer doer / Bate-coco quando passa / Coração pega a bater / Eh Pague eh! / Dói porque é bom fazer doer, escreveu Bopp. O poeta usou a alcunha Pagu por achar que a moça deveria adotar como nome artístico a primeira sílaba do nome e do sobrenome – ignorando o fato de ela se chamar Patrícia Galvão, e não Patrícia Goulart…
Mas o fato é que Pagu ficou. E ela acabou casando-se com Oswald, 20 anos mais velho, que se separou de Tarsila. Para agravar o caso já controverso para a sociedade de 1930, celebraram a união em frente aos túmulos da família do noivo, no cemitério da Consolação. No mesmo ano, nasceu o filho do casal, Rudá de Andrade.
Nova mulher brasileira
A marca como mulher forte e desejada, no entanto, não é o único nem o maior trunfo de Pagu. Ela fez história própria e foi das principais figuras femininas do século passado. Não à toa, Rita Lee e Zélia Duncan dedicaram a ela uma canção: Não sou atriz, modelo ou dançarina / Meu buraco é mais em cima / Sou rainha do meu tanque / Sou Pagu indignada no palanque.
O poeta Augusto de Campos, seu biógrafo, a anuncia como símbolo da “nova mulher brasileira, sensível, politizada, desreprimida”. E reconhece que seu valor como personagem é maior do que sua obra: “A peripécia política, poética e existencial é que faz dela uma figura fascinante. Pagu foi revolucionária na política, na arte e na prática da vida”.
Ela fez de tudo um pouco. A maior parte da obra está espalhada por artigos de jornal. Produziu críticas literárias e traduziu autores como James Joyce, inédito na época. Depois que morreu, em 12 de dezembro de 1962, os filhos descobriram até histórias policiais criadas por ela, assinadas com pseudônimos e publicadas por Nelson Rodrigues.
Pavio aceso
No movimento Antropofágico, de 1928, Pagu colaborou com artigos e desenhos, além de escrever com Oswald o caderno O Romance da Época Anarquista ou As Horas de Pagu que São Minhas. O casal ainda redigia A Hora do Povo, um jornal panfletário, depois de aderir ao Partido Comunista.
Um encontro com Luís Carlos Prestes, nesse período, mudaria radicalmente a vida da recém-casada. Pagu era um pavio esperando algo que a acendesse, e ali estava a fórmula: “Convicção, grandiosidade do sacrifício e, principalmente, pureza”, dizia o líder comunista.
A musa modernista já não aturava mais as rodas de comunistas nos cafés. Queria agir de verdade, entre o povo, e se colocou à disposição do Partido. Em um comício em Santos, foi presa pela primeira vez – ao longo da vida, seria detida 23 vezes. No Rio de Janeiro, trabalhou como operária em situação de miséria, com posição de destaque entre os líderes comunistas das fábricas. Apesar da recusa do Partido por qualquer tipo de trabalho intelectual, escreveu nesse período sua maior obra literária. Parque Industrial (1933) é um romance urbano, marxista e feminista. Retrata de forma crua a vida dos operários, sem esconder a linguagem do povo e a sexualidade. Quem assina, por ordens partidárias, é o pseudônimo Mara Lobo.
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Depois de abandonar a condição de musa modernista, trabalhou como operária, foi líder trabalhista, escreveu um romance marxista e feminista. Foi presa 23 vezes.
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Retalhos de azul
Uma menina esfarrapada, na praça Vermelha, em Moscou, pedia esmola ao lado do túmulo de Lênin. A cena abalou as convicções de Pagu, mas ela seguiu viagem. Trabalhava como correspondente no Oriente de vários jornais brasileiros. Foi a única latina presente na coroação do último imperador japonês. Por sua amizade com ele, conseguiu trazer soja para ser plantada no Brasil. Ao atuar pelo PC na França, acabou expatriada. Passou então pela prisão mais longa, de cinco anos, naquele tempo de Estado Novo.
A Famosa Revista, segundo e último romance de Pagu, deixa clara a mudança na vida dela. Em 1945, já separada de Oswald e casada há cinco anos com o jornalista Geraldo Ferraz, escreve com ele o que representa a nova crença. Candidata a deputada pelo Partido Socialista Brasileiro, anuncia: “Depois das rajadas de tempestade, colaremos nas retinas úmidas os últimos retalhos de azul”.
Viveu os últimos anos em Santos, adorando o mar e agitando a cultura da cidade. O foco agora era o teatro. Levou para os palcos do litoral paulista gente como Plínio Marcos, Sérgio Mamberti e Zé Celso Martinez Corrêa. Até o fim, era a Pagu que ela mesma havia definido uma vez: “Mulher de ferro com zonas erógenas e aparelho digestivo”.
SAIBA MAIS Paixão Pagu: A autobiografia precoce de Patrícia Galvão (Agir, 2005). Pagu: Vida e obra, de Augusto de Campos (Brasiliense, 1982).
http://www.almanaquebrasil.com.br/ilustres-brasileiros/olhos-moles-alma-forte/
Pagú: Breve Biografia
sábado, 6 de novembro de 2010
Ela fez de sua vida um campo de batalha contra a intolerância, os desmandos e os grilhões impostos por senhores de uma sociedade retrógrada e, nos mais diversos aspectos, injusta. E mais do que isso, ela se fez mulher. Um espírito batalhador que foi capaz de ir muito além dos limites impostos por seu corpo físico e que inovou e revolucionou costumes.
PATRÍCIA GALVÃO - PAGU
Nascida em São João da Boa Vista, São Paulo, em 9 de junho de 1910, aos 15 anos de idade, Patrícia Rehder Galvão já colaborava com o jornal de sua escola. O apelido Pagu foi dado por Raul Bopp. Ela teria lhe mostrado alguns textos e o poeta sugeriu que ela adotasse um nome literário. Sugeriu Pagu, brincando com as sílabas do nome da escritora, que Bopp equivocadamente acreditava se chamar Patrícia Goulart.
Oswald de Andrade acabou se apaixonando pela jovem, que aos 18 anos era corajosa, cheia de idéias vanguardistas e de uma beleza intrigante. Foi correspondido e começou achá-la o "mais autêntico símbolo feminino da ousadia e inconformismo artístico e cultural de seu tempo". Mas, a grande admiração e amizade que Pagu tinha por Tarsila (esposa de Oswald), fez com que inicialmente o romance se tornasse complicado. Nesse período ela começou a escrever para a "Revista Antropofágica" (editada pelos modernistas) e a fazer grandes obras como "Álbum de Pagu", dedicado à Tarsila e o "Diário a quatro mãos", com Oswald de Andrade.
No início de 1930, separado de Tarsila, Oswald e Pagu se casam, numa cerimônia um pouco estranha. O acontecimento foi simbólico, realizado no cemitério da Consolação, em São Paulo. Só mais tarde, eles se retrataram na igreja. No ano seguinte, o casal se alistou na militância do Partido Comunista e nesta fase editam o jornal esquerdista "O Homem do Povo", através do qual faziam críticas severas, bem-humoradas e acima de tudo polêmicas à sociedade paulista da época. Nesse jornal, Pagu assinava uma coluna feminista, "A Mulher do Povo". Queria, através de seu trabalho, impulsionar a mulher à luta, ao trabalho e ao mundo.
Apesar de sua fidelidade e coragem, era vista pelos membros do PCB como uma agitadora sensacionalista. Seu feminismo ousado irritava os mais tradicionais do partido e, quando foi presa em um comício de estivadores realizado em Santos, não foi defendida pelo partido.
O casamento e as paixões eram temas freqüentes em seus artigos. Para ela o mundo moderno havia trazido consigo a falência do romantismo amoroso e a decomposição do amor eterno. As mulheres deveriam estar preparadas para isto e buscar uma sensualidade sadia e "autoconsciente". Pagu sabia que, em sua cultura e sociedade, a mulher estava, mais do que nunca, condicionada a represar a sua libido, mas que o mundo estava mudando e por isso a brasileira deveria constituir uma nova feminilidade.
Pagu, sempre foi uma mulher à frente de seu tempo. Casada e com uma filha, jamais se limitou à rotina da vida doméstica e muito menos às incoerências do seu Partido. Como jornalista, era ainda mais contundente, escrevendo sobre a condição feminina das mulheres das classes menos privilegiadas, em São Paulo. Em 1929, com o pseudônimo de Mara Lobo, escreveu sua obra mais famosa, "Parque Industrial". O pseudônimo foi adotado por exigência do seu Partido. Ao contrário da vertente regionalista de 30, Pagu trata de um Brasil urbano, em pleno processo de industrialização, e de uma problemática de classe, envolvendo uma classe média de valores burgueses e um proletariado que, embora explorado, não se cala frente à opressão. Após essa publicação, começou a viajar pelo mundo como correspondente dos jornais "Correio da Manhã", "Diário de Notícias" e "A Noite". Suas viagens renderam frutos, pois acabou sendo a primeira repórter latino-americana a presenciar a coroação do Imperador de Manchúria (China) à coroação de Pu Yi. Foi através deste evento que ela obteve as primeiras sementes de soja para serem plantadas no Brasil. Assim, Patrícia Galvão marcou sua presença na vida brasileira não apenas através de sua vida política e de suas contribuições culturais, mas também mostrando-se uma das responsáveis pela introdução de uma nova espécie agrícola, de grande importância para o país.
Chegando em Paris, arrumou uma identidade falsa, Leonnie, e alistou-se no PCF. Presa, identificada como estrangeira e na iminência de ser submetida a Conselho de Guerra ou deportada para a fronteira da Itália ou Alemanha, foi identificada pelo embaixador Souza Dantas, que conseguiu a repatriação de Pagu. Seu regresso não foi nada feliz, seu casamento com Oswald não estava bem e o Brasil era regido pelo Estado Novo de Getúlio Vargas. Pagu foi novamente presa, sofrendo terríveis torturas nos quatro anos e meio que ficou em cárcere. Ao sair da cadeia, estava impressionantemente magra, com o seu físico e emocional em pedaços. Apesar de tudo, não se entregou, e lúcida, decidiu romper definitivamente com o Partido Comunista.
Após a separação de Oswald, Pagu casou-se com o jornalista Geraldo Ferraz e com ele teve seu segundo filho, indo morar em Santos. Juntos foram redatores de "A Manhã" e de "O Jornal", no Rio, e de "A Noite", em São Paulo.
Entre 1946 e 1948, Pagu integrou, sob a coordenação de Ferraz, a equipe do suplemento literário do "Diário de São Paulo". Assinava a seção "Cor Local", onde prolongava seu combate cultural. Em 1949, Pagu tentou o suicídio com um tiro na cabeça. Escreveu sobre isso em "Verdade e Liberdade", panfleto de 1950: "Uma bala ficou para trás, entre gazes e lembranças estraçalhadas".
Na década de 50, partiu para novas empreitadas fundando a Associação dos Jornalistas Profissionais. Em uma última tentativa de resgatar sua militância política, candidatou-se pelo Partido Socialista Brasileiro, mas não foi eleita. Seu discurso acabou não agradando. Nele revelava as condições degradantes a que fora submetida, que seus nervos e inquietações acabaram transformando-a "numa rocha vincada de golpes e amarguras, mas irredutível". Em 1955 tornou-se crítica de teatro, literatura e televisão do jornal "A Tribuna" de Santos. Traduziu para o teatro a peça de Tonesco, "A Cantora Careca". Dirigiu e também traduziu a peça de Arrabal "Fango e Lis" com um grupo amador (essa peça teve estréia mundial em Santos, sendo vista até em Paris, ficando mais de dez anos em cartaz). Incentivou o teatro amador, fez campanha para a construção do Teatro Municipal (instalado hoje no Centro de Cultura que leva seu nome), traduziu e dirigiu teatro de vanguarda, fundou a União do Teatro Amador, que revelou tantos artistas depois consagrados em teatro e televisão. Foi o caso de Plínio Marcos que conheceu Pagu, como o palhaço de circo Frajola. Foi ela quem incentivou o nascimento do dramaturgo. Dono de uma linguagem crua, a única que conhecia, e de uma densa carga dramática, apresentou a ela o texto de "Barrela". Em uma época em que dizer palavrão em público podia ser considerado um ato ofensivo, era praticamente impossível apresentar uma peça que tratava de estupro e códigos de conduta dentro de uma cela. Tanto que, logo após a primeira exibição, em 1959, "Barrela" foi premiada e censurada em seguida.
Em fins de setembro de 1962, viajou para Paris, na intenção de submeter-se a uma intervenção cirúrgica. A cirurgia não apresentou grandes resultados, o que levou Pagu a tentar novamente o suicídio. Nos últimos anos de vida, apesar de trabalhar incansavelmente pela cultura, começou a beber de forma compulsiva. Suas roupas ficam surradas, escuras e fora de moda. Seus cabelos viviam despenteados, seu olhar era angustiado, cansado, vago...
Datado de 23 de setembro de 1962, esse foi seu último texto, antes de viajar para Paris: "Nada, nada, nada. Nada mais do que nada. Abrir meu abraço aos amigos de sempre. Poetas compareceram, alguns escritores, gente de teatro, birutas no aeroporto. E nada."Precisava ser operada, o câncer a perseguia. Sem sucesso, voltou para o Brasil. Faleceu em 12 de dezembro de 1962.
"O escritor da aventura não teme a aprovação ou a renovação dos leitores. É-lhe indiferente que haja ou não, da parte dos críticos, uma compreensão suficiente. O que lhe importa é abrir novos caminhos à arte, é enriquecer a literatura com gérmens que venham a fecundar a literatura dos próximos cem anos".
Fontes:
http://www.spbancarios.com.br/rb88/rb12.htm
http://www.aleitamento.org.br/meninas/pagu.htm
Sexo e gênero em Parque Industrial, de Pagú
SEXO E GÊNERO EM PARQUE INDUSTRIAL, DE PAGÚ
Régis Bonvicino
Parque industrial
de Mara Lobo/Patrícia Galvão
Rio de Janeiro, José Olympio, 2006, 122 p.
Parque industrial, de Patrícia Galvão, a Pagú (1910-1962), foi escrito em 1932 e lançado no ano seguinte (em pequena tiragem financiada por Oswald de Andrade), sob o pseudônimo de Mara Lobo, que adotou para evitar ainda mais atritos com o Partido Comunista, no qual militava. O livro foi, portanto, composto sob Getúlio Vargas, que tomara o poder em 1930, sucedendo a Washington Luís, que governara o país de 1926 a 1930, após breve período de governo da junta militar liderada pelo general Tasso Fragoso (meses do mesmo 1930).
A polarização política do mundo entre comunistas e fascistas, que ocorreu nessa década, pautou igualmente as artes, que, pouco a pouco, na maioria de suas manifestações, foi deixando de lado as experiências internacionais e nacionais de vanguarda dos anos 1910 e 1920 para entrar num universo mais “realista”, “denuncista” “engajado” e partidário, que Carlos Drummond de Andrade sintetizaria com felicidade no poema “Nosso tempo”, de A rosa do povo, de 1945, ano da queda de Vargas: “este é tempo de partido/ tempos de homens partidos”. Um exemplo paradigmático do que acabo de enunciar: a tela Operários, de 1933, de Tarsila do Amaral, a musa do modernismo de 1922 e do Movimento Antropofágico de 1928, dissidência à esquerda do primeiro e no qual se alistava também Pagú, e do qual Oswald sairia “casado” com ela, deixando Tarsila.
Raul Bopp, um dos integrantes do Movimento Antropofágico, afirma, em Vida e morte da antropofagia(Rio de Janeiro/Brasília, Civilização Brasileira/inl, 1977), que a antropofagia, além de determinar uma estrutura nova do pensamento, “tomara posse de seu tempo”. Em conseqüência, Parque industrialmaneja ainda técnicas de vanguarda, herdadas da década anterior e de sua vivência antropofágica, entre elas, a frase telegráfica, os diálogos nervosos, os cortes abruptos e uma plasticidade vívida.Parque industrial é, para muitos, como Kenneth David Jackson, que o verteu para o inglês, “um importante documento social e literário, com uma perspectiva feminina e única do mundo modernista de São Paulo”; por esse ângulo, alguns outros classificariam-no como “romance social”, numa linhagem que viria de O cortiço, de Aluísio de Azevedo, ou de Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, ambos do período realista do século xix.
Discordo: vejo em Parque industrial a inauguração, entre nós ao menos, de um gênero, o do romance panfletário, explícito e assumido. Na verdade, seu lado menos rico é o de documento social: as descrições dos cortiços e dos operários é ligeira, intelectualizada e sem profundidade. O livro vale-se da oposição Brás/Higienópolis (e de muitas outras), sem revelar detalhes dos habitantes dos dois bairros e deles mesmos, registrados em tinta rápida. Ao longo de sua duração, percebe-se o tom proselitista, insistente, como se Pagú quisesse provar alguma coisa aos colegas de Partido Comunista: “[...] na grande penitenciária social os teares se elevam e marcham se esgoelando” ou “[...] A burguesia perdeu seu próprio sentido. O proletariado marxista, através de todos os perigos, achou o seu caminho e nele se fortifica para o assalto final”. Cito dois exemplos, poderia transcrever inúmeros desse tipo de clichê, hoje e naquela época também. Outro, digamos deste modo, dos clichês do livro é a tradução óbvia de Oswald de Andrade no personagem Alfredo Rocha: “[...] Alfredo Rocha lê Marx e fuma um Partagas no apartamento rico do hotel Central (o Esplanada). Os pés achinelados machucam a pelúcia das almofadas. Cachorrinhos implicantes. Bonecas. O chic boêmio. Uma criadinha chinesa para servir o casal (nota do resenhista: a esposa, uma ex-proletária, está ausente do hotel naquele momento). A desarrumação. Ming! (fala Alfredo Rocha), Me dá chá com beijos [...]”. Persistem os clichês na descrição do ambiente, clichês que lhe dão exatamente o tom panfletário e, aí sim, pioneiro.
A delícia literária do livro está exatamente em outras descrições, as de cenas de sexualidade, sempre ousadas para aquela época: expressionistas, originais. Vejamos: “[...] A boca farta de beijos. O bronze de sua cabeça saturada de alegria está mais bronzeado. As pernas se alçam, com rasgões nas meias, sobre saltos descomunais. Traz um braseiro nas faces e um lenço novo, futurista, no pescoço [...]”. Ou então: “[...] Línguas maliciosas escorregam nos sorvetes compridos. Peitos propositais acendem os bicos sexualizados no sweater de listras, roçando [...]”; no caso, a palavra “listras” empresta à cena uma inflexão da descoberta de alguma coisa alucinante! Cito outro exemplo, esse comovente, sobre a personagem Corina, uma prostituta grávida que quer se suicidar: “[...] A sua roupa chove com a chuva. Volta taciturna para o mesmo banco. Procura. Não acha a nota que ele lhe atirara [...]”. Parque industrial inaugura o gênero romance panfletário construído à base – em sua maior parte – de clichês políticos e sociais, mesmo para os anos 1930. Seu maior mérito é, ao mesmo tempo, seu maior demérito. No entanto, ele registra o deslocamento dos poucos poetas/artistas que contavam em São Paulo nos anos 1930 – duríssimos sob Vargas e sob a industrialização caótica dessa cidade, sempre desplanejada em todos os sentidos. Há uma passagem que revela bem isso que acabo de anotar: “[...] Bruna desperta. A moça abaixa a cabeça revoltada. É preciso calar a boca! Assim, em todos os setores proletários, todos os dias, todas as semanas, todos os anos! Nos salões dos ricos, os poetas lacaios declamam ‘Como é lindo o teu tear’ [...]”.
Pagú, para fazer um paralelo atual, é nossa Anna Politkovskaya, a jornalista russa de 48 anos que cobria a guerra da Chechênia e foi assassinada, em 2006, em razão de sua luta e insistência em permanecer na Rússia, em solidariedade a suas fontes igualmente assassinadas durante os muitos anos de reportagens que produziu, desagradando o governo Putin e outros. Pagú pagou com prisão e tortura por sua ideologia e luta; pagou com descrédito por ser uma vanguardista antropofágica. Não se “exilou” em Paris! Parque industrial, além de já ser um clássico, é, ainda hoje, leitura interessante.
Parque industrial
de Mara Lobo/Patrícia Galvão
Rio de Janeiro, José Olympio, 2006, 122 p.
Coco de Pagu
Raul Bopp
Pagu tem os olhos moles
uns olhos de fazer doer.
Bate-côco quando passa.
Coração pega a bater.
Eh Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer.
Passa e me puxa com os olhos
provocantissimamente.
Mexe-mexe bamboleia
pra mexer com toda a gente.
Eli Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer.
Toda a gente fica olhando
o seu corpinho de vai-e-vem
umbilical e molengo
de não-sei-o-que-é-que-tem.
Eh Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer.
Quero porque te quero
Nas formas do bem-querer.
Querzinho de ficar junto
que é bom de fazer doer.
Eh Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer.
Raul Bopp
Pagu tem os olhos moles
uns olhos de fazer doer.
Bate-côco quando passa.
Coração pega a bater.
Eh Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer.
Passa e me puxa com os olhos
provocantissimamente.
Mexe-mexe bamboleia
pra mexer com toda a gente.
Eli Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer.
Toda a gente fica olhando
o seu corpinho de vai-e-vem
umbilical e molengo
de não-sei-o-que-é-que-tem.
Eh Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer.
Quero porque te quero
Nas formas do bem-querer.
Querzinho de ficar junto
que é bom de fazer doer.
Eh Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer.
ALGUMA COISA SOBRE PAGÚ
1910: Nasce, em 9 de junho, Patrícia Rehder Galvão, em São João da Boa Vista (Estado de São Paulo).
1928: Estuda e forma-se na Escola Normal, em São Paulo; sob a influência de Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral participa do movimento antropofágico; Raul Bopp dedica-lhe o poema Coco e lhe dá o apelido que se tornou famoso.
1930: Oswald separa-se de Tarsila e se une a Pagú; nasce Rudá de Andrade, segundo filho de Oswald e primeiro de Pagú.
1931: Ingressa no Partido Comunista juntamente com Oswald de Andrade, e edita, também com ele, o jornal O Homem do Povo, onde assina a coluna feminista “A Mulher do Povo”; é presa pela primeira vez em agosto ao participar, como militante comunista, do comício do PC e dos estivadores em Santos.
1933: Publica o romance Parque Industrial, sob o pseudônimo de Mara Lobo; sai em viagem pelo mundo, passando pelos EUA, Japão, Polônia, Alemanha, URSS e França.
1935: É presa em Paris como comunista estrangeira, com a identidade de Leonnie, e repatriada ao Brasil; começa a trabalhar no jornal A Platéia e separa-se definitivamente de Oswald; é novamente presa e torturada, ficando na cadeia por cinco anos.
1940: Ao sair da prisão, rompe com o Partido Comunista; casa-se com o jornalista Geraldo Ferraz.
1941: Nasce Geraldo Galvão Ferraz, seu segundo filho.
1942: Inicia intensa participação na imprensa, atuando sobretudo como crítica de arte.
1945: Lança novo romance, A famosa revista, escrito em colaboração com Geraldo Ferraz.
1950: Concorre à Assembléia Legislativa de São Paulo pelo Partido Socialista Brasileiro; lança o manifesto “Verdade e Liberdade”; passa a exercer importante papel no panorama cultural da cidade de Santos.
1952: Freqüenta o curso da Escola de Arte Dramática (EAD) de São Paulo e passa a se dedicar cada vez mais ao teatro.
1955/62: Trabalha no jornal A Tribuna, de Santos, como crítica literária, teatral e de televisão.
1962: Em setembro de 62 vai a Paris para ser operada de um câncer, mas a cirurgia fracassa e então tenta o suicídio; volta ao Brasil e morre no dia 12 de dezembro.
Tributo a Pagú
Constantemente atualizados:
http://www.guioliva.com.br/pontes_para_tributos/2_pagu.html
- Belo site em homenagem:
http://www.guioliva.com.br/pontes_para_tributos/2_pagu.html
Peça homenageia centenário da escritora Patrícia Galvão
quinta-feira, 30 de setembro de 2010
O Teatro Estadual Maestro Francisco Paulo Russo de Araras traz um espetáculo diferenciado
nessa sexta-feira, a partir das 20h.
A peça As Pagus homenageia a escritora, poeta e jornalista Patrícia Galvão, que completaria 100 anos em 2010. O título faz alusão à maneira com que ela era conhecida no meio artístico.
O trabalho de pesquisa, montagem e direção foi encabeçado pela atriz Christiane Tricerri, que também atua na peça ao lado de Majeca Angelucci.
O espetáculo foi criado a partir de textos da escritora e também de entrevistas, encenações e workshops realizados pelas duas atrizes, dando luz à ideia de múltiplas Pagus existentes em cada mulher Brasil afora.
No palco, Pagu Senhora está moribunda, quando Pagu Antropofágica pede à ela mais algumas horas de vida para relembrar e repensar seus instantes vividos intensamente em celas, hospitais, navios, países distantes, terras brasilis, seus amigos, amantes, filhos e sua vida jornalística, artística, política e teatral.
Triceri, que estreou profissionalmente no teatro em 1981, acumula papéis memoráveis e prêmios ao longo de sua carreira – entre eles, o de melhor atriz pela APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte). Na TV, participou da minissérie A Casa das Sete Mulheres, Anarquistas Graças a Deus e Cometa.
Os ingressos estão à venda na bilheteria do Teatro e custam R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia-entrada para professores, aposentados, pessoas acima de 60 anos e estudantes). Mais informações podem ser obtidas pelo telefone 3541-5969.
Formação intelectual e política de Patrícia Galvão (*)
2010-08-30 Adelto Gonçalves (**)Patrícia Rehder Galvão (1910-1962), nascida em São João da Boa Vista, interior do Estado de São Paulo, foi jornalista, escritora, animadora cultural e militante política. Como jornalista, trabalhou no Diário da Noite, A Fanfulla, Diário de S.Paulo, Correio da Manhã, A Tribuna, de Santos, e Agência France Presse, em São Paulo. Sua formação intelectual e política deu-se mesmo na década de 1930. Mas, como foram os anos 30? Ao contrário do que se diz, a chamada Revolução de 30 foi um golpe militar como outro qualquer e não constituiu revolução social nenhuma. Foi apenas uma rearrumação das elites no poder. Assim, os cafeicultores paulistas, que haviam sugado as tetas públicas durante toda a República Velha (1889-1930), tiveram de dar lugar também a oligarcas de outros Estados, enquanto Getúlio Vargas levava para o Palácio do Catete o modelo de governo implantado por Júlio de Castilhos (1860-1903) no Rio Grande do Sul por 30 anos que serviu para configurar o Estado Novo, de índole positivista. Algumas conquistas foram obtidas pelos trabalhadores à época, mas nada há que prove que, se a República Velha tivesse durado mais quinze anos, esses avanços não teriam acontecido. A rigor, o Brasil continuou o mesmo país atrasado, com legiões de excluídos e analfabetos. Para piorar, o getulismo representou a quebra da ordem constitucional. E logo se transformou em ditadura sem qualquer disfarce, com perseguições a seus desafetos. A jovem Patrícia Galvão levantou-se contra isso, aderindo ao Partido Comunista do Brasil (PCB), que, como sempre, nunca passou de uma seita, sem qualquer perspectiva de empolgar as massas e alcançar o poder. Iludida, como ativista política e membro do PCB, ela combateu a ditadura de Getúlio Vargas, o que lhe valeu 23 prisões. Depois da Segunda Guerra Mundial, ao visitar Moscou, desiludiu-se com o comunismo soviético, rompeu com o PCB, passando a defender um socialismo de linha trotskista. Lúcia Teixeira, no livro Croquis de Pagu e outros momentos felizes que foram devorados reunidos (Editora Cortez/Unisanta, 2004), reproduz um trecho do panfleto "Verdade & Liberdade" em que Pagu diz: "(...) Dos vinte aos trinta anos, eu tinha obedecido às ordens do Partido. Assinara declarações que me haviam sido entregues, para assinar sem ler (...). Mas, não haviam conseguido destruir a personalidade que transitoriamente submeteram. E o ideal ruiu, na Rússia, diante da infância miserável das sarjetas, os pés descalços e os olhos agudos de fome. Em Moscou, um grande hotel de luxo para os altos burocratas. Na rua, as crianças mortas de fome: era o regime comunista..." Pagu publicou os romances Parque Industrial (edição da autora, 1933), sob o pseudônimo Mara Lobo, considerado o primeiro romance proletário brasileiro, e A Famosa Revista (Americ-Edit, 1945), em colaboração com Geraldo Ferraz (1905-1979). Parque Industrial foi publicado nos Estados Unidos em tradução de K. David Jackson em 1994 pela University of Nebraska Press. Seus contos policiais, escritos àquela época sob o pseudônimo King Shelter e publicados originalmente na revista Detective, dirigida pelo dramaturgo Nelson Rodrigues (1912-1980), foram reunidos em Safra Macabra (Livraria José Olympio Editora, 1998). Em 1950, já desiludida com o PCB, saiu candidata a deputada estadual pelo Partido Socialista Brasileiro, sem ter sido eleita. A essa época, publicou em edição própria Verdade & Liberdade, panfleto de propaganda política em que denuncia os totalitarismos comunista e fascista, defendendo um socialismo democrático. Em sua fase madura, como animadora cultural, revelou e traduziu grandes autores até então inéditos no Brasil como James Joyce, Eugène Ionesco, Arrabal e Octavio Paz. Teve um trabalho marcante como incentivadora do teatro amador, especialmente em Santos, onde trabalhava no jornal A Tribuna, cuja redação era dirigida por seu marido, Geraldo Ferraz. O apelido Pagu foi-lhe dado pelo poeta modernista Raul Bopp (1898-1984), autor de Cobra Norato, que imaginou que seu nome fosse Patrícia Goulart. Ela mesma inventou muitos pseudônimos para si, como Zazá, Gim, Solange Sohl, Mara Lobo, Pat, Pit e Leonie. O cinema brasileiro já homenageou Pagu várias vezes: além de documentário de Rudá de Andrade, há o filme Eternamente Pagu, dirigido por Norma Benguell, no qual ela foi interpretada por Carla Camurati. Patrícia Galvão aparece também no filme O Homem do Pau Brasil, de Joaquim Pedro de Andrade, e foi tema do documentário Eh, Pagu!, Eh!, de Ivo Branco. Lúcia Teixeira lembra ainda, em seu livro, que os anos de prisão, tortura e perseguição deixaram muitas marcas em Pagu, o que a levou a tentar o suicídio duas vezes — a primeira, em 1949, quando deu um tiro na cabeça, durante estada na casa do artista Flávio de Carvalho, em São Paulo; e a segunda, em setembro de 1962, quando, diagnosticada com câncer nos pulmões, foi a Paris submeter-se à cirurgia no Hospital Laennec. Com o fracasso da operação, "ao antever o sofrimento e a morte iminentes, atira no próprio peito", escreve a autora. Mais uma vez, sobreviveu. Retornou, então, para Santos, onde morreu em dezembro. ________________________ (*) Publicado no caderno cultural Dois + do jornal A Tarde, de Salvador-Bahia, dia 28/8/2010, pág.3. (**) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com. br Adelto Gonçalves |
http://www.blog.comunidades.net/adelto/index.php?op=arquivo&idtopico=4215343
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