Mulher paixão


Além de militante comunista e feminista, a escritora Pagu foi uma mulher que viveu e enfrentou sua época com toda a intensidade




O poeta e ensaísta mexicano Octavio Paz (1914-1998) costumava escrever que a vida de certas pessoas se confunde com a época e o lugar em que viveram. Em alguns casos, essa identificação é tão intensa que fica difícil saber quanto dos acontecimentos foram influenciados por essa pessoa e quanto dessa pessoa foi influenciada pelos acontecimentos.

Acredito que a brasileira Patrícia Rehder Galvão, nascida em São João da Boa Vista (SP), aos 9 dias de junho de 1910, e falecida em 12 de dezembro de 1962, na cidade de Santos (SP), é um exemplo de mulher que marcou e foi marcada, intensamente, por sua época. Pagu, como ficou conhecida, recebeu esse apelido do poeta antropofágico Raul Bopp, que pensava, quando a conheceu, que ela se chamava Patrícia Goulart. Dedicou a ela um poema em que se pode ler: “Você tem corpo de cobra/Onduladinho e indolente/Dum veneninho gostoso/Que dói na alma da gente”. Pagu foi militante comunista, cronista de jornal e uma das primeiras feministas no Brasil. Escandalizou a família conservadora e a elite paulistana da época (1920) quando assumiu, aos 11 anos, seu namoro com o cineasta Olympio Guilherme. Foi escritora de romance, gênero em que é reconhecida como a mulher pioneira a introduzir o romance proletário no Brasil com a obra intitulada Parque Industrial (1933). Esse romance foi relançado em 1994 e traduzido nos Estados Unidos pela Universidade de Nebraska sob a responsabilidade do pesquisador brasilianista David Jackson.

Aos 18 anos, ela aderiu ao Movimento Antropofágico, participando da Revista de Antropofagia em sua 2ª edição. Pagu assinou uma das primeiras colunas de TV do país, no jornal A Tribuna, adotando o pseudônimo Gim. Inaugurou, como mulher, a primeira coluna de histórias em quadrinhos com Malakabeça, Fanikita e Kabeluda. Foi a primeira tradutora no Brasil de escritores como James Joyce, Mallarmé, Octavio Paz, Beckett, Bretton, Vallery e outros. Na ficção, David Jackson coloca Pagu ao lado de escritores do porte de George Orwell e Aldous Huxley. Jackson encerra seu prefácio do livro Paixão Pagu: a Autobiografia Precoce de Patrícia Galvão da seguinte maneira: “Mulher inteligente, independente, audaciosa, insubordinada, num Brasil ainda pouco modernista para tão imensa oferta”.

Perseguida e torturada pelo Estado Novo

Para fazer jus à definição, Patrícia Galvão pagou um preço muito alto durante toda sua vida. A mão pesada da ditadura de Getúlio Vargas caiu com toda força e crueldade sobre essa mulher que nunca se dobrou ou fez concessões. Pagu colocou como poucos toda sua força e sua paixão naquilo que fez. Suas decisões sempre foram marcadas pela radicalidade das decisões apaixonadas. Pagu dedicou suas melhores energias à militância política. Fez isso desde seu ingresso, ainda muito jovem, no Partido Comunista Brasileiro – que teve a honra de fazer pelas mãos do lendário dirigente Luiz Carlos Prestes – até o seu total desencanto com o ideário revolucionário comunista. Desencanto que aconteceu em plena Praça Vermelha no coração de Moscou, na Rússia. Foi quando viu, e não conseguiu entender, como uma criança podia estar pedindo esmolas no “altar” da revolução que se fez em nome da redenção da classe operária. Perguntou-se, então: “A revolução se fez para isto? Para que continuem a humilhação e a miséria das crianças?”.

Sua condição de inimiga política do Estado Novo fez com que fosse presa 23 vezes pela ditadura de Getúlio Vargas. Da última prisão, saiu viva por um detalhe. Mesmo muito jovem – tinha na época apenas 30 anos –, sua saúde estava muito debilitada em função das péssimas condições da prisão e das violentas torturas sofridas.

A intensidade da vida e da obra de Pagu pode ser avaliada por meio da sua repercussão no cinema, em filmes como Eternamente Pagu (1988) e em documentários como Eh Pagu Eh (1982) e Patrícia Galvão: Livre na Imaginação, no Espaço e no Tempo (2001).

Na literatura, ganhou vários textos e livros sobre sua vida. Em seriados na TV, seu personagem apareceu em Um Só Coração (Globo, 2004). Foi musa retratada em desenhos e pinturas de Cândido Portinari e Di Cavalcanti. Também inspirou a música na composição Pagu, de Rita Lee e Zélia Duncan, e mais tarde na voz de Maria Rita.

Enfim, esta modernista é um ótimo exemplo de uma intelectual e artista que conseguiu ultrapassar épocas e gerações. Seu legado, mesmo que pouco conhecido nos ambientes mais embrutecidos de certa academia e intelectualidade copista, recebe uma atenção especial daqueles e daquelas que continuam em busca de “algo de novo sob o sol” na cultura brasileira e latino-americana.

O poeta Carlos Drummond de Andrade não passou imune ao charme de Pagu e se refere a ela como uma mulher que imprimiu um colorido todo especial para a luta política da época, bem como para o movimento modernista de 1922. Pouco antes de morrer, o teatrólogo maldito Plínio Marcos se referiu à Pagu como uma espécie de anjo “indisciplinado e rebelde” que veio a este mundo para nos incomodar.

Desencanto com o comunismo

Bendito incômodo este produzido por Pagu. Numa época em que ainda vemos tanta imitação na arte, na filosofia, na política e na educação, nada mais oportuno que olhar para o exemplo da mulher que soube, como poucas, viver sua época com toda a intensidade que suas forças lhe permitiram. Patrícia Galvão nunca deixou de assumir com dignidade e radicalidade suas ideias. Após sua permanência na União Soviética como militante revolucionária internacional, começou a se dar conta de que grande parte de tudo aquilo que ela combatia no regime capitalista era, também, muito presente no regime socialista que ela adotou como bandeira e religião. Ficou chocada com as intrigas, as traições, as delações, as perseguições e com os julgamentos e as execuções sumárias que viu acontecerem no interior do partido comunista ao qual ela servia como um fiel soldado.

Em uma carta escrita durante a prisão, ela relatou experiências e desencantos com o ideário político que adotou incondicionalmente durante toda sua vida. Na carta remetida em 1940 para seu então marido, o jornalista Geraldo Ferraz, Pagu faz um inventário e um relatório ao mesmo tempo minucioso e dramático de sua vida. Não ficam fora desta carta suas relações afetivas. Dedica uma especial atenção a sua relação tumultuada e ao mesmo tempo muito companheira e cúmplice com o antropofágico Oswald de Andrade, com quem foi casada e teve o filho Rudá Andrade.

A leitura dessa carta-biografia pode nos mostrar muito mais da Patrícia Galvão. Pode nos levar a conhecer uma mulher para além da militante comunista, da feminista engajada, da operária de fábricas na década de 30. Revela-nos alguém capaz de resumir sua vida dizendo: “Sempre achei trágica minha vida. Absurdamente trágica. Hoje parece apenas que lhe conto que fui à quitanda comprar laranjas”.

Como santista de coração, amava o mar de Santos, cidade que escolheu para viver seus últimos dias. Foi uma mãe capaz de morrer pela felicidade do filho; uma mulher capaz de dividir meia fatia de pão com uma criança faminta ou caminhar horas para encontrar um amigo para conversar.

Pagu foi uma lutadora até o final de seus dias. Tentou suicídio no desespero de uma doença incurável. Após resignar-se, começou a lutar bravamente contra o câncer que lhe ceifou a vida aos 52 anos.

Termino este texto com a frase com que Pagu inicia sua carta-depoimento e como forma de um convite a sua leitura: “Não escreverei aqui sobre a morte ou sobre mortes. Quero escrever sobre a vida, pois há pequeninas flores sob as esbeltas palmeiras, é uma noite com uma certa aragem respingada finíssima e fria e o visitante foi embora...”.

Professor da UFSM e escritor. Pós-doutor em Antropofagia Cultural Brasileira. Coordena o Núcleo Kitanda: Educação e Intercultura – CNPq/UFSM


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