Ser cristão nos tempos de Hitler
segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Não obstante, os católicos não nutriam qualquer fidelidade para com Weimar; ela não era "nacionalista" o bastante. E com relação a Hitler, que era, eram ambivalentes. É verdade que alguns bispos a princípio foram hostis aos nazistas. Em 1930, por exemplo, o cardeal Betram, de Breslau, chamou o nazismo de um "erro grave", e descreveu seu nacionalismo fanático como "um delírio religioso que tem de ser combatido com o maior vigor possível". Naquele mesmo ano, uma declaração oficial do dr. Mayer, vigário-geral da arquidiocese de Mainz, confirmou que os católicos estavam proibidos de votar em nazistas, devido à política racista do partido. Os bispos bávaros também atacaram o nazismo, e uma declaração dos bispos de Colônia chamou a atenção para o paralelo com a Action Française, oficialmente condenada pelo Santo Ofício três anos antes. Foi uma comparação simplória, porém, pois a longa hesitação de Roma a respeito do movimento francês era notória – era evidente que não se encontrava na mesma categoria do comunismo, nem mesmo do socialismo. (De fato, Pio XII revogou a proscrição da Action Française, sem qualquer retratação de sua parte, assim que tornou-se Papa, em 1939). De qualquer modo, alguns dos bispos recusaram-se terminantemente a assumir uma posição contra o nazismo – e sobretudo contra Hitler, cuja popularidade vinha aumetnando cada vez mais. O cardeal Faulhaber estabeleceu uma distinção clara entre "o Führer", a quem considerava bem-intencionado e basicamente um bom cristão, e alguns de seus "asseclas malignos". (Era uma ilusão comum, inteiramente fundamentada na racionalização de desejos, entre os clérigos germânicos de todas as seitas). Alguns bispos foram mais longe: Shreiber, de Berlim, dissociou-se da condenação de Mainz; além disso, em Fulda, agosto de 1931, quando se tentou chegar a uma condenação unânime do nazismo por todos os bispos católicos, a resolução foi derrotada por votação. O fato é que a maioria dos bispos era monarquista. Detestavam o liberalismo e a democracia muito mais do que a Hitler. Assim, em vez disso aprovou-se uma declaração ambígua que, pior, para contrabalançar, foi acompanhada (nessa como em outras ocasiões) de manifestações fervorosas de patriotismo alemão e por protestos extremados quanto aos padecimentos e ao tratamento injusto sofridos pela Alemanha – de modo que o efeito líquido foi ajudar os nazistas e inclinar os eleitores católicos a apoiá-los. Na tentativa de se valer do triunfo do patriotismo de Hitler, os bispos católicos tornaram-se joguetes em suas mãos, incentivando os fiéis a lhe dar seus votos.
pp. 590-591:
"A despeito das tentativas tanto do clero protestante quanto do católico de se iludir, Hitler não era um cristão, e a maioria dos membros de seu movimento era assumidamente anticristã. É claro que, por vezes, Hitler era enganoso. Ele jamais deixou a Igreja oficialmente; às vezes referia-se à "providência" em seus discursos, e freqüentou a Igreja em seus primeiros anos no poder. Na década de 20, comentou com Ludendorf que precisava dissimular seu ódio pelo catolicismo, por necessitar dos votos católicos da Bavária tanto quanto dos protestantes prussianos – "o resto pode vir depois". O programa de seu partido era deliberadamente ambíguo: "exigimos liberdade para todas as denominações religiosas no Estado, desde que não constituam um perigo para este e não militem contra os costumes e a moralidade da raça germânica". Essas condições cautelosas deveriam ter sido mais que suficientes para alertar qualquer cristão inteligente. Entretanto, manteve-se a crença, sobretudo entre os protestantes, de que Hitler era um homem muito pio. Aceitavam suas garantias tranqüilas quando ele se isentava, ou se o movimento fosse conveniente, dos escritos de seus homens – desse modo, ele ressaltou que o tratado anticristão de Rosenberg, "O Mito do Século XX", incluído no Índex católico, era uma visão pessoal, não uma política oficial do partido". Na verdade, ele odiava o cristianismo, e demonstrava um desprezo justificado por seus praticantes alemães. Logo após ascender ao poder, disse a Hermann Rauschnig que pretendia eliminar o cristianismo "pela raiz e pelos galhos" na Alemanha. A seu ver, o método deveria consistir em "deixá-lo apodrecer como um membro que gangrena". Além disso: "você acredita de fato que as massas voltarão algum dia a ser cristãs? Besteira. Nunca mais. Essa história está encerrada (...) mas podemos acelerar o processo. Faremos os clérigos cavarem seus próprios túmulos. Vão trair seu Deus por nós. Vão trair qualquer coisa para salvar seus empreguinhos e salários miseráveis".
Essa dura avaliação chega perto da verdade. Nem a Igreja Evangélica nem a Católica jamais condenou o regime nazista. No entanto, os nazistas em geral nem sequer deram-se ao trabalho (como fizera Hitler, a princípio) de fingir ser cristãos. Rejeitavam de modo ferrenho as acusações de ser ateus. Himmler declarou que o ateísmo não seria tolerado nas fileiras da SS. Em contrapartida, diziam acreditar na "religião do sangue". Situavam-se na tradição milenarista, e tinham algo em comum com as pseudo-religiões experimentais da década de 1790 na França revolucionária, mas com um conteúdo racista a mais. Como os cultos da revolução, tentaram desenvolver uma liturgia. A editora nazista publicou um panfleto escrevendo "formas de celebração de caráter litúrgico que serão válidas por séculos". O serviço principal consistia em "um discurso solene de quinze a vinte minutos, em linguagem poética", uma "confissão de fé recitada pela congregação" e, em seguida, o "hino do dever"; a cerimônia seria encerrada com uma saudação ao Führer e um verso de cada um dos hinos nacionais. O credo nazista, utilizado, por exemplo, em festivais da colheita, dizia:

p. 594:
"A Gestapo cuidava da repressão onde fosse necessária. Raras vezes teve de ser severa. Com exceção de alguns indivíduos, dificilmente os clérigos precisavam ficar muito tempo na prisão. Dos dezessete mil pastores evangélicos, nunca havia mais de cinquenta cumprindo penas longas ao mesmo tempo. Entre os católicos, um bispo foi expulso de sua diocese e outro recebeu uma breve pena por delitos cambiais. Não houve resistência além disso, apesar de, em meados de 1939, todas as escolas religiosas terem sido abolidas. Só as seitas livres ativeram-se o suficiente a seus princípios para merecer a perseguição aberta. A mais corajosa foi a Testemunhas de Jeová, que proclamou sua total oposição doutrinária desde o princípio, e sofreu de acordo. Recusou-se a cooperar em qualquer sentido com o Estado nazista, que denunciava como rematadamente maligno."

"A resistência cristã a Hitler e ao nazismo foi fraca e ineficaz, mas existiu - foi mais persistente e criteriosa que a de qualquer outro elemento da sociedade germânica. Alguns cristãos ocidentais reconheceram sua existência e procuraram fortalecê-la; havia uma tênue linha de comunicação cristã através do abismo da guerra. Na década de 30, George Bell, bispo anglicano de Chichester, estabelecera contato com o grupo antinazista da Igreja Evangélica, em particular com o pastor Dietrich Bonhoeffer [foto ao lado]. Com a irrupção da guerra, empenhou-se em combater o insensato patriotismo cristão que, em 1914, reforçara ódios dos dois lados. Com efeito, ele foi o único prelado cristão, nas duas guerras, que tentou pensar em termos do que um sacerdote deveria fazer naquelas circunstâncias. Em novembro de 1939, publicou um artigo, "A Função da Igreja em Tempos de Guerra", na Fortnightly Review, em que argumentou ser vital que a Igreja continuasse sendo a Igreja, não "a ajudante espiritual do Estado". Ela devia definir princípios fundamentais de condutas, "não hesitar (...) em condenar a promoção de vinganças, ou o bombardeio de populações civis, pelas forças militares de seu próprio país. Deve colocar-se contra a propaganda de mentiras e ódio, estar pronta a estimular a retomada de relações cordiais com a nação inimiga. Deve opor-se a qualquer guerra de extermínio ou escravidão, bem como a toda medida que vise diretamente a destruir o moral de um povo".
Bell empenhou-se ao máximo por seguir esses princípios, todos os quais foram desrespeitados pelos Aliados - com conhecimento e incentivo das Igrejas. Em junho de 1942, ele conseguiu alcançar a Suécia, de onde entrou em contato com a resistência alemã e com Bonhoeffer. Este dissera a seus amigos, em 1940, depois do êxito de Hitler na França: "se nos declaramos cristãos, não há lugar para interesses pessoais. Hitler é o anticristo. Portanto, temos de prosseguir com nosso trabalho e eliminá-lo, quer ele seja ou não bem-sucedido". A última mensagem de Bonhoeffer, contrabandeada da prisão pouco antes de sua execução, em abril de 1945, foi para Bell: "(...) com ele eu creio no princípio de nossa Fraternidade Cristã Universal, que se ergue acima de todos os interesses nacionais, e que nossa vitória está assegurada."
http://ocontornodasombra.blogspot.com/2009/01/ser-cristo-nos-tempos-de-hitler.html
A banalização do mal
Os Os recentes episódios envolvendo declarações xenófobas e racistas de jovens decepcionados com o resultado das últimas eleições presidenciais acende o sinal amarelo para que todas as pessoas de bem, independentemente de coloração partidária, façam a sua parte na pregação da tolerância e do respeito à convivência democrática entre os diferentes setores da sociedade brasileira. O preconceito é - lamentavelmente - uma característica inerente à condição humana, sublimada, civilizadamente reprimida ou controlada na imensa maioria dos casos, mas é uma besta-fera que sempre está à espreita esperando o momento certo de atacar. Por isso, é importante relembrar como a população alemã foi enredada na barbárie nazista. Pessoas comuns foram sendo transformadas em monstros, muitas vezes sem se darem conta da suprema maldade em que imergiam. O mal era visto como algo banal. A revista Aventuras na História traz uma entrevista de Ian Kershaw, considerado o maior biógrafo de Adolf Hitler, em que ele diz que Hitler teve seu trabalho facilitado pelo silêncio dos cidadãos comuns, que se preocuparam mais com seus próprios umbigos do que com o que estava acontecendo à sua volta. Nas palavras de Kershaw, eles "viraram as costas para o diabo". Confira um trecho da entrevista reproduzida no blog História Viva:
Qual a relação entre o antissemitismo da população em geral e o do Partido Nazista?
Havia na Alemanha um antissemitismo latente muito difundido. Muitas pessoas achavam que os judeus eram poderosos demais, controlavam a economia e a mídia de massa. Mas elas não eram propensas a se engajar em ações violentas contra os judeus. Hitler era o mais radical dos radicais em termos de antissemitismo. Com o tempo, mais e mais pessoas foram absorvidas pelo Partido Nazista, que era determinado por essa necessidade patológica de expulsar os judeus. Mais as pessoas aderiam ao partido, mais estavam expostas a isso. E assim o antissemitismo dos radicais do partido se estendeu à burocracia de Estado, sem ter penetrado da mesma maneira no povo em sua maioria.
Quais foram os limites da penetração ideológica nazista?
A propaganda foi bem-sucedida na criação do mito do Führer como um grande líder carismático. Também foi importante para explorar o sentimento nacionalista dos alemães e na intensificação do ódio aos judeus. Mas, em outras áreas do dia a dia, a propaganda nazista não foi tão bem-sucedida. As pessoas se preocupavam mais com os problemas do cotidiano.
Uma das frases do senhor é constantemente citada: "A estrada para Auschwitz foi construída com ódio, mas pavimentada pela indiferença". Qual seu significado?
Quis dizer que a dinâmica das forças dirigentes que conduziram a Auschwitz foi provida por esse ódio patológico imbuído em Hitler. Mas, para muitas das pessoas comuns, os problemas de todo dia predominavam. É uma atitude de fechar os olhos, virar as costas para o diabo. A dinâmica do ódio da minoria obteve sucesso porque a maioria não se importava.
O senhor já disse que, se vivesse na Alemanha nazista, poderia estar tão confuso como o povo na época.
Situações e circunstâncias mudam indivíduos. Pessoas que fizeram coisas horríveis na era nazista eram antes perfeitamente comuns. Claro, todos gostaríamos de pensar que seríamos antinazistas. Mas a verdade é que a maioria de nós iria transigir com o regime. Ao se ajustar, você é cada vez mais sugado, e talvez vá acabar no Exército ou em alguma organização, onde fará coisas que, no sentido moral, serão aberrantes.
Simplesmente Pagú
sábado, 4 de dezembro de 2010
“Mulher de ferro com zonas erógenas e aparelho digestivo” (pág. 70). Assim se autodefine Patrícia Galvão, polêmica é pouco quando se fala dessa mulher que virou personagem de novela, de filmes, tema de música e é, sem dúvida, uma das figuras femininas mais intensas existentes na história da política e intelectualismo de nosso país. Embora na atualidade, quando se fala em ‘Pagu’, poucas sejam as pessoas que saibam efetivamente quem foi essa mulher: revolucionária, feminista, militante política, intelectual de grande produção e uma das representantes do modernismo brasileiro que, no centenário do seu nascimento (1910-2010), merece ter sua história revisitada.
Acredito que a melhor maneira de conhecermos um pouco dessa grande personagem é por ela mesma, e o livro “Paixão Pagu – a autobiografia precoce de Patrícia Galvão” faz isso de forma esplêndida, trata-se de uma autobiografia sem a pretensão inicial de o ser. Compilado a partir de uma carta dela destinada ao segundo marido, o escritor e jornalista Geraldo Ferraz, em 1940, sendo que suas ultimas linhas foram escritas ainda na prisão. A ultima das vinte e três que sofreu. O livro traz três introduções, dos filhos Rudá (dela com Oswald de Andrade) e Geraldo (com Geraldo Ferraz) e outra de David Jackson (especialista em literatura de língua portuguesa e, em particular, da obra de Patrícia Galvão). Além de fotos de alguns momentos da vida de Pagu, a obra traz uma cronologia, que ajuda o leitor a se situar melhor nos fatos que são narrados por ela.
O texto é forte, pois se trata de uma carta depoimento, ela usa essa forma para se “apresentar” ao marido Geraldo; é praticamente um convite para que ele sofra e viva com ela todas as suas lutas, acertos e erros. Assim, nada é suprimido, termos, palavras, sentimentos, pensamentos tudo vai brotando nas páginas deste livro onde o leitor se depara com várias sensações e, se não tem nenhum conhecimento prévio sobre Pagu, vai construindo uma personagem que, muitas vezes, nem parece ter sido real. São relatos de suas memórias, de quem era e de como se transformou no decorrer de sua luta, ao escrever a última linha, muito jovem ainda, com apenas trinta anos, parece ser a história de uma vida, tamanha a intensidade e a vivência dos fatos descritos. Em alguns momentos o leitor vai se chocar, pois Pagu é de uma autenticidade que incomoda, ela se apresenta como uma mulher simples a procura de um amor verdadeiro, na continuidade do relato percebemos que ela anseia por sentimentos verdadeiros, não somente um amor, ela busca uma pureza de atos que destoa do mundo pequeno burguês em que vive.
Moderna demais para um mundo de mente estreita, mulher forte num período em que as mulheres não tinham essa prerrogativa; num Brasil pré-moderno, onde elas não tinham voz nem vez. Assim, uma figura que foge as regras, burla as normas impostas pelo paternalismo do estado nacional, em plenos anos 30/40, só poderia passar para a história como irresponsável e exibicionista. Incompreendida pela família e o meio que a cerca, suas inquietações a levam de encontro com a antropofagia modernista e a produção intelectual. Busca a diversidade.
O livro vai relatando os compassos e descompassos dessa busca, um misto de ingenuidade e loucura, em seu texto existe uma mescla de poesia, romance e conto policial. Algo de trágico surge na historia que vai se desenrolando a cada frase, ela mesma diz que sempre achou sua vida trágica e, mesmo considerando que, ao escrever, essa vertente desapareça, ao leitor, algumas passagens são de uma crudeza que a tragédia salta aos olhos.
De início, essa carta-relatório fala de sua vida pessoal, desde as primeiras experiências sexuais aos doze anos, “o primeiro fato distintamente consciente da minha vida (...)” (pág. 53), como de suas impressões em relação ao mundo que a rodeava, onde tudo era uma inquietação, uma procura incessante por algo que não sabia identificar/compreender. Diz que, embora tenham morado muitos anos no Brás, um bairro tipicamente operário de São Paulo, não tinha interesses em relação às questões sociais, considerava-se muito egocêntrica neste período que antecede sua formação no curso normal, o mundo lhe era indiferente, existia uma rebeldia sem razão de ser. “Naquele tempo eu é que não compreendia o ambiente. Eu me lembro que me considerava muito boa e todos me achavam ruim.” (pág. 53). Buscava uma liberdade de ação. É nesse momento da vida que conhece Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, da qual Oswald irá se separar para ficar com Pagu. A narrativa é cheia de sentimentos fortes. A figura de Oswald de Andrade destoa do estereótipo construído, por ele mesmo naquele período e, conhecido até os dias atuais, “O palhaço da burguesia” (pág. 12). Pagu conheceu e fala dele como ninguém. Relata um inicio de relação conturbada e sem amor “Eu não amava Oswald. Só afinidades destrutivas nos ligavam.” (pg. 60)
Mesmo o conhecendo bem, em determinados momentos chegou a acreditar num amor a ser construído, mas sofre algumas decepções. Grávida e de casamento marcado para o dia seguinte, encontra Oswald num apartamento acompanhado de outra mulher. Tinham uma relação aberta, moderna e liberal, era essa imagem de mulher/companheira que ele passava para todos, inclusive para suas parceiras de sexo, uma permissividade indiferente a tudo, até de sentimentos. Mesmo compreendendo a poligamia como conseqüência da representação familiar reacionária e preconceituosa, Pagu sofreu. Seu sofrimento é racional, deixa claro que preferia isso à piedade “Sentia meu carinho atacado violentamente, mas havia a imensa gratidão pela brutalidade da franqueza. Ainda hoje o meu agradecimento vai para o homem que nunca me ofendeu com piedade.” (pág. 63). Ela queria amor, Oswald lhe tinha admiração.
Ao falar do filho Rudá o texto assume algo poético/filosófico. Ao mesmo tempo em que demonstra o amor materno que transborda, mostra todos os medos de uma mulher insegura, torturada num casamento sem amor e uma vida de aparências. Ela tem uma insatisfação com sua vida sem propósitos reais, intensos. É neste contexto de infelicidade pessoal que sua necessidade de luta surge. Através de seus contatos com a intelectualidade, parte para Montevidéu, depois para Buenos Aires onde tem programado um encontro com Prestes, deixando Oswald e o filho. Tinha pouco conhecimento sobre a doutrina marxista, mas procura em Prestes algumas respostas para suas buscas. Suas impressões em relação ao seleto grupo de intelectuais no qual é inserida na Argentina são bem inesperadas, pois ela diz que, apesar de viver entre eles, considerava-os sórdidos, alega que esperava muito mais do “setor mais vivo da América do Sul” (pág. 73).
Seu encontro com Prestes não acontece, volta ao Brasil por conta de problemas de saúde do filho, mas retoma seu interesse pelo comunismo, tendo Oswald como companheiro. Mesmo sem muito conhecimento e convicção, criaram o jornal Homem do povo que não sobreviveu por conta de processos e represálias. Fazem um auto-exilio e seguem juntos para Montevidéu onde Pagu, finalmente, se encontra com Luis Carlos Prestes. Um encontro sem planejamento, mas que veio a transformar a forma de pensar dessa mulher irrequieta. Ele “Fez-me ciente da verdade revolucionária e acenou-me com a fé nova. A alegria da fé nova. A infinita alegria de combater até o aniquilamento pela causa dos trabalhadores, pelo bem geral da humanidade.” (pág. 75). Esse encontro foi à mola que a impulsionou para a luta política. Queria ser comunista com a mesma convicção e honestidade de Prestes, porem vai sofrer do mesmo mal que a maioria dos intelectuais de esquerda, partir da teoria para a ação.
Sendo ela um espírito inquieto em eterna busca, essa paralisação diante da impossibilidade de ação ao invés de tirar lhe o ânimo, a angustiava. “Meia dúzia de comunistas vivendo em cafés. O que faziam estes comunistas conhecidos, se não saíam dos cafés?” (pág. 77). Tem seus primeiros contatos com o operariado em Santos, onde se depara com um ambiente pré-grevista orientado pelo sindicato da construção civil. Seu encontro com Herculano de Souza, um comunista ativo e bem articulado, fez com que se inserisse de corpo e alma na luta do partido. “Perturbada, desde esse dia, resolvi escravizar-me espontaneamente, violentamente. O marxismo. A luta de classes. A libertação dos trabalhadores. Por um mundo de verdade e de justiça. Lutar por isto valia uma vida. Valia a vida.” (pág. 81).
O comício na Praça da República em Santos, onde falaria pela primeira vez aos trabalhadores, é um marco em sua historia revolucionária. A polícia tinha membros disfarçados e infiltrados entre os operários presentes e, para impedir a realização do comício, começou a atirar na multidão. Herculano um dos líderes do movimento foi atingido nas costas, vindo a falecer momentos depois, mas não antes de pedir-lhe que continuasse o comício. As lembranças e descrição do ocorrido são tão fortes que o leitor cria uma imagem de guerra na memória, soldados atirando contra uma multidão armada apenas com a voz, sonhos e bandeiras vermelhas. A cavalaria toma conta da praça e Pagu é presa. Ela alega que muito do que se falou sobre sua participação foi por se tratar de uma comunista com origem pequeno burguesa que, ao ser presa, transformou tudo num fato que precisava ser explorado. Mas a descrição do seu discurso de improviso, falando da alma, das coisas que ela realmente acreditava e sentia, faz o leitor criar na memória cada segundo daquele momento de paixão, ideologia e sofrimento.
O exagero na divulgação de sua participação, fez com que a organização do partido circulasse um manifesto acentuando “a desordem provocada por mim, que eu tinha falado sem conhecimento ou autorização da organização, com intento provocador, etc.” (pág. 91). Mesmo sendo deliberadamente humilhada, aprova o manifesto, pois estava disposta a cumprir com todas as determinações do partido, acredita que neste caso, seu nome apareceu mais que o da organização. Mesmo na prisão, onde o sofrimento foi intenso, diz que a dor fora suplantada pela alegria proporcionada pela luta. O único tormento era não ter notícias dos companheiros.
Seu envolvimento com o partido vai sendo descrito de forma rápida, como se a vivência daqueles dias ainda estivesse presente a cada palavra. Suas prisões, as primeiras impressões sobre a doutrina do partido, o fim da sua vida pessoal, as armadilhas da polícia. Dando a impressão de que, finalmente, tenha conseguido colocar um fim na sua inquietação interna, de ter encontrado uma motivação para a vida, de estar feliz.
Todas as suas escolhas são pautadas pela organização, pelo partido. Para ser considerada proletária, se vê obrigada a abandonar, definitivamente, Oswald pra quem voltou após sair da prisão, e com isso abandona, também, o filho. “Sofri horrivelmente deixando o Rudá. Eu sei o que sofri com isto, mas não houve de minha parte a menor hesitação. Talvez não o amasse tanto como julgava. (...).” (pág. 95). Embora tenha feito a opção pelo partido, ela não consegue ter a aprovação da organização, nem a crença nas suas intenções e fidelidade à causa. Em alguns momentos diz ter se submetido a caprichos sexuais para conseguir as informações desejadas. Nada lhe pertencia, tudo era do partido, inclusive seu corpo, mesmo assim, não tinha o crédito almejado. Herança de sua condição pequeno burguesa.
Ao ler estas páginas tem-se a impressão que Pagu sofreu todas as dores do mundo, sempre movida pela fé na causa revolucionária. Em contrapartida nada recebe em troca por parte do partido. Em vários momentos o leitor irá se irritar com as escolhas feitas por ela, uma ingenuidade que revolta, ao mesmo tempo em que enternece pela fé depositada numa causa. Assim, algumas separações e retornos para Oswald são feitos por vontade da organização. São momentos de amor e dor, pois são encontros e desencontros com o filho e, por mais que deseje ficar, ela sabe que irá abandoná-lo ao menor sinal ou determinação do partido.
Mesmo a possibilidade de empregar-se num jornal lhe é negada, pois a organização não aceita seu trabalho intelectual, alegam que ela tem que aceitar a proletarização, para poder participar da luta do partido. Essa postura muda apenas no momento em que se torna operária de uma metalúrgica. “Com o meu avental xadrez, com as mãos feridas, o rosto negro de pó, fui considerada comunista sincera.” (pág. 99). O reconhecimento de sua dedicação, lhe rende a participação na Conferência Nacional do partido onde conhece os “chefes supremos” do Partido Comunista Brasileiro e da Internacional no Brasil. Fome, dor, desconforto e duas horas de sono em cinco dias de conferência. Tudo perfeitamente justificável pela causa ali defendida. “O proletariado brasileiro guiado por uma vanguarda daquela têmpera se libertaria, seria vitorioso, dentro de pouco tempo.” (pág. 102).
Mesmo já tendo sido reconhecida sua dedicação, sofre novo afastamento. Agora por conta de sua intelectualidade que é anterior a militância, a direção do partido procura afastar todos os que não possuem origem proletária, devido ao comportamento de um casal de intelectuais que se envolvem emocionalmente, indo contra as diretrizes do partido. Embora de espírito questionador, Pagu, mesmo discordando, aceita todas as determinações com resignação, toma tudo como o melhor a ser feito. Trabalha intelectualmente na clandestinidade, é nesse período que publica Parque industrial, considerado o primeiro romance proletário brasileiro, sob o pseudônimo de Mara Lobo.
Volta ao partido, agora inserida no “Comitê Fantasma, o organismo de máxima ilegalidade do partido.” (pág. 106). A descrição da movimentação desse braço da organização é no mínimo revoltante, seus membros são de índole duvidosa, e as informações solicitadas eram as mais incomuns e muitas vezes sem sentido, mas que para adquiri-las eram usados qualquer subterfúgio. Era o que se esperava dela, que usasse de todas as possibilidades para obter as informações necessárias ao partido, inclusive seu próprio corpo. “(...) eis-me membro do Comitê Fantasma, obrigada à dissimulação, à intriga, ao fingimento, a toda espécie de maquiavelismo repugnante...” (pág. 117). Mesmo se sentindo usada e não concordando com algumas coisas, a sua fé na luta era inabalável.
Depois de sofrer novo afastamento, sem explicação, decide juntamente com Oswald, sair do Brasil. A organização do partido, sabendo da sua viajem, a designa para ir à Rússia, com seus próprios recursos, fornecem apenas os documentos. Começa assim suas viagens pelo mundo. EUA, Japão, China e Rússia. No texto não há grandes relatos dessas viagens, apenas algumas impressões, algumas descritas como sem importância total. Não havia novidades para ela, parecia tudo igual no mundo, até chegar à China. Lá, sua percepção a respeito das condições de vida da população chinesa a atormenta, incendiando de vez seu desejo pela revolução, pela salvação dos oprimidos “É tudo tão miseravelmente absurdo, que eu nunca tive coragem de narrar o que encontrei ali. A mentira, a fabula grotesca me horroriza pelo ridículo e eu mesma penso que tudo que vi foi mentira.” (pág. 144). Sua experiência com as drogas é narrada neste período de total descrédito do mundo.
Ao chegar a Sibéria todo o mal estar adquirido na China se esvai, sua alegria ao entrar no país onde o ideal revolucionário, teoricamente, esta se concretizando, onde o comunismo iguala a todos num bem estar comum, faz com que sinta a vida soprar em seu rosto. Seu deslumbramento é instantâneo, embora consciente do seu fanatismo, chora diante do túmulo de Lênin. Percebe alguns sinais de que nem tudo é do jeito que se apresenta aos seus olhos, mas prefere crer no seu coração, naquilo que buscou durante tanto tempo. Necessitava crer que a revolução dera certo em algum lugar no mundo, para assim crer que no Brasil, mesmo com muitos tropeços, também viria a ser real. Porem acontece o que ela menos espera, se encontra com uma criança faminta, maltrapilha, com saúde visivelmente abalada, pedindo esmolas pelas ruas de Moscou.
Neste momento ela se depara com a realidade nua e crua, que seu fanatismo não deixava enxergar, não considera sua luta equivocada, mas percebe que nem todos os sonhos são possíveis. Sofre na alma a dor de não conseguir ver os ideais comunistas atingindo quem, no seu ponto de vista, deveriam ser os mais protegidos: as crianças. Por tudo que sofreu em sua vida, pelas crianças da China, que a abalaram profundamente, por seu filho, do qual não cuidara da forma que considerava ideal, pela fé incondicional na causa, grande é sua decepção. O leitor sofre com Pagu, chora e se revolta por ela. De repente, tudo que nossos olhos enxergam no transcorrer da leitura deste texto, explodem diante dos olhos dela, como personagem real da história, uma história sem rascunhos, sem cópias, única. Ela se vê consumida como pessoa, que tudo abandonou para viver a luta proletária, para concretizar os ideais comunistas. Todo este mundo caiu por terra ao ver aquela criança sem lar, sem comida, sem saúde diante dela. Impossível pra quem esta lendo sua narrativa, absorver toda a decepção sentida “Então a Revolução se fez para isto? Para que continuem a humilhação e a miséria das crianças?” (pág. 150). Ao leitor fica a angustia de saber que se trata do mundo real, e não uma ficção muito bem escrita.
Pagu não abandona o partido, passa a trabalhar com a produção intelectual, colabora com jornais e revistas ainda na França. È presa em manifestações de rua. Volta ao Brasil e, em 1937, depois de uma condenação de dois anos de prisão por causa do levante comunista, foge da prisão e é considerada perigosa e inimiga pública do governo Vargas. Embora este período não faça parte dos relatos, percebe-se que a vida toda ela foi contestadora, corajosa e apaixonada. Mulher forte que cometeu muitos erros na vida, mas todos cometidos em busca de grandes acertos, acertos estes que atingissem a muitos, ao mundo. Embora em sua escrita, perceba-se uma tendência minimalista, ela foi muito mais do que deixa transparecer ao falar de si mesma. Pagu é merecedora de fazer parte da história política nacional, mas a história real, sem retoques. Merece ser vista por ela mesma, para que se chegue a conclusões próprias, este relatório é um convite que ela faz ao marido Geraldo para conhecê-la melhor e, no momento que seus filhos decidem publicá-lo, é estendido a todos que se interessam pelos personagens que marcaram nossa história. Conheçam Patrícia Galvão ou, simplesmente Pagu.GALVÃO, Patrícia. Paixão Pagu: uma autobiografia precoce de Patrícia Galvão. Org.: Geraldo Galvão Ferraz, 1ª edição. Rio de Janeiro: Agir Editora, 2005.
Ao usar este artigo, mantenha os links e faça referência ao autor:
Simplesmente Pagu: Resenha do livro ''Paixão Pagu - A autobiografia precoce de Patricia Galvão'' publicado 28/10/2010 por eliane aparecida de oliveira em http://www.webartigos.com
Acredito que a melhor maneira de conhecermos um pouco dessa grande personagem é por ela mesma, e o livro “Paixão Pagu – a autobiografia precoce de Patrícia Galvão” faz isso de forma esplêndida, trata-se de uma autobiografia sem a pretensão inicial de o ser. Compilado a partir de uma carta dela destinada ao segundo marido, o escritor e jornalista Geraldo Ferraz, em 1940, sendo que suas ultimas linhas foram escritas ainda na prisão. A ultima das vinte e três que sofreu. O livro traz três introduções, dos filhos Rudá (dela com Oswald de Andrade) e Geraldo (com Geraldo Ferraz) e outra de David Jackson (especialista em literatura de língua portuguesa e, em particular, da obra de Patrícia Galvão). Além de fotos de alguns momentos da vida de Pagu, a obra traz uma cronologia, que ajuda o leitor a se situar melhor nos fatos que são narrados por ela.
O texto é forte, pois se trata de uma carta depoimento, ela usa essa forma para se “apresentar” ao marido Geraldo; é praticamente um convite para que ele sofra e viva com ela todas as suas lutas, acertos e erros. Assim, nada é suprimido, termos, palavras, sentimentos, pensamentos tudo vai brotando nas páginas deste livro onde o leitor se depara com várias sensações e, se não tem nenhum conhecimento prévio sobre Pagu, vai construindo uma personagem que, muitas vezes, nem parece ter sido real. São relatos de suas memórias, de quem era e de como se transformou no decorrer de sua luta, ao escrever a última linha, muito jovem ainda, com apenas trinta anos, parece ser a história de uma vida, tamanha a intensidade e a vivência dos fatos descritos. Em alguns momentos o leitor vai se chocar, pois Pagu é de uma autenticidade que incomoda, ela se apresenta como uma mulher simples a procura de um amor verdadeiro, na continuidade do relato percebemos que ela anseia por sentimentos verdadeiros, não somente um amor, ela busca uma pureza de atos que destoa do mundo pequeno burguês em que vive.
Moderna demais para um mundo de mente estreita, mulher forte num período em que as mulheres não tinham essa prerrogativa; num Brasil pré-moderno, onde elas não tinham voz nem vez. Assim, uma figura que foge as regras, burla as normas impostas pelo paternalismo do estado nacional, em plenos anos 30/40, só poderia passar para a história como irresponsável e exibicionista. Incompreendida pela família e o meio que a cerca, suas inquietações a levam de encontro com a antropofagia modernista e a produção intelectual. Busca a diversidade.
O livro vai relatando os compassos e descompassos dessa busca, um misto de ingenuidade e loucura, em seu texto existe uma mescla de poesia, romance e conto policial. Algo de trágico surge na historia que vai se desenrolando a cada frase, ela mesma diz que sempre achou sua vida trágica e, mesmo considerando que, ao escrever, essa vertente desapareça, ao leitor, algumas passagens são de uma crudeza que a tragédia salta aos olhos.
De início, essa carta-relatório fala de sua vida pessoal, desde as primeiras experiências sexuais aos doze anos, “o primeiro fato distintamente consciente da minha vida (...)” (pág. 53), como de suas impressões em relação ao mundo que a rodeava, onde tudo era uma inquietação, uma procura incessante por algo que não sabia identificar/compreender. Diz que, embora tenham morado muitos anos no Brás, um bairro tipicamente operário de São Paulo, não tinha interesses em relação às questões sociais, considerava-se muito egocêntrica neste período que antecede sua formação no curso normal, o mundo lhe era indiferente, existia uma rebeldia sem razão de ser. “Naquele tempo eu é que não compreendia o ambiente. Eu me lembro que me considerava muito boa e todos me achavam ruim.” (pág. 53). Buscava uma liberdade de ação. É nesse momento da vida que conhece Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, da qual Oswald irá se separar para ficar com Pagu. A narrativa é cheia de sentimentos fortes. A figura de Oswald de Andrade destoa do estereótipo construído, por ele mesmo naquele período e, conhecido até os dias atuais, “O palhaço da burguesia” (pág. 12). Pagu conheceu e fala dele como ninguém. Relata um inicio de relação conturbada e sem amor “Eu não amava Oswald. Só afinidades destrutivas nos ligavam.” (pg. 60)
Mesmo o conhecendo bem, em determinados momentos chegou a acreditar num amor a ser construído, mas sofre algumas decepções. Grávida e de casamento marcado para o dia seguinte, encontra Oswald num apartamento acompanhado de outra mulher. Tinham uma relação aberta, moderna e liberal, era essa imagem de mulher/companheira que ele passava para todos, inclusive para suas parceiras de sexo, uma permissividade indiferente a tudo, até de sentimentos. Mesmo compreendendo a poligamia como conseqüência da representação familiar reacionária e preconceituosa, Pagu sofreu. Seu sofrimento é racional, deixa claro que preferia isso à piedade “Sentia meu carinho atacado violentamente, mas havia a imensa gratidão pela brutalidade da franqueza. Ainda hoje o meu agradecimento vai para o homem que nunca me ofendeu com piedade.” (pág. 63). Ela queria amor, Oswald lhe tinha admiração.
Ao falar do filho Rudá o texto assume algo poético/filosófico. Ao mesmo tempo em que demonstra o amor materno que transborda, mostra todos os medos de uma mulher insegura, torturada num casamento sem amor e uma vida de aparências. Ela tem uma insatisfação com sua vida sem propósitos reais, intensos. É neste contexto de infelicidade pessoal que sua necessidade de luta surge. Através de seus contatos com a intelectualidade, parte para Montevidéu, depois para Buenos Aires onde tem programado um encontro com Prestes, deixando Oswald e o filho. Tinha pouco conhecimento sobre a doutrina marxista, mas procura em Prestes algumas respostas para suas buscas. Suas impressões em relação ao seleto grupo de intelectuais no qual é inserida na Argentina são bem inesperadas, pois ela diz que, apesar de viver entre eles, considerava-os sórdidos, alega que esperava muito mais do “setor mais vivo da América do Sul” (pág. 73).
Seu encontro com Prestes não acontece, volta ao Brasil por conta de problemas de saúde do filho, mas retoma seu interesse pelo comunismo, tendo Oswald como companheiro. Mesmo sem muito conhecimento e convicção, criaram o jornal Homem do povo que não sobreviveu por conta de processos e represálias. Fazem um auto-exilio e seguem juntos para Montevidéu onde Pagu, finalmente, se encontra com Luis Carlos Prestes. Um encontro sem planejamento, mas que veio a transformar a forma de pensar dessa mulher irrequieta. Ele “Fez-me ciente da verdade revolucionária e acenou-me com a fé nova. A alegria da fé nova. A infinita alegria de combater até o aniquilamento pela causa dos trabalhadores, pelo bem geral da humanidade.” (pág. 75). Esse encontro foi à mola que a impulsionou para a luta política. Queria ser comunista com a mesma convicção e honestidade de Prestes, porem vai sofrer do mesmo mal que a maioria dos intelectuais de esquerda, partir da teoria para a ação.
Sendo ela um espírito inquieto em eterna busca, essa paralisação diante da impossibilidade de ação ao invés de tirar lhe o ânimo, a angustiava. “Meia dúzia de comunistas vivendo em cafés. O que faziam estes comunistas conhecidos, se não saíam dos cafés?” (pág. 77). Tem seus primeiros contatos com o operariado em Santos, onde se depara com um ambiente pré-grevista orientado pelo sindicato da construção civil. Seu encontro com Herculano de Souza, um comunista ativo e bem articulado, fez com que se inserisse de corpo e alma na luta do partido. “Perturbada, desde esse dia, resolvi escravizar-me espontaneamente, violentamente. O marxismo. A luta de classes. A libertação dos trabalhadores. Por um mundo de verdade e de justiça. Lutar por isto valia uma vida. Valia a vida.” (pág. 81).
O comício na Praça da República em Santos, onde falaria pela primeira vez aos trabalhadores, é um marco em sua historia revolucionária. A polícia tinha membros disfarçados e infiltrados entre os operários presentes e, para impedir a realização do comício, começou a atirar na multidão. Herculano um dos líderes do movimento foi atingido nas costas, vindo a falecer momentos depois, mas não antes de pedir-lhe que continuasse o comício. As lembranças e descrição do ocorrido são tão fortes que o leitor cria uma imagem de guerra na memória, soldados atirando contra uma multidão armada apenas com a voz, sonhos e bandeiras vermelhas. A cavalaria toma conta da praça e Pagu é presa. Ela alega que muito do que se falou sobre sua participação foi por se tratar de uma comunista com origem pequeno burguesa que, ao ser presa, transformou tudo num fato que precisava ser explorado. Mas a descrição do seu discurso de improviso, falando da alma, das coisas que ela realmente acreditava e sentia, faz o leitor criar na memória cada segundo daquele momento de paixão, ideologia e sofrimento.
O exagero na divulgação de sua participação, fez com que a organização do partido circulasse um manifesto acentuando “a desordem provocada por mim, que eu tinha falado sem conhecimento ou autorização da organização, com intento provocador, etc.” (pág. 91). Mesmo sendo deliberadamente humilhada, aprova o manifesto, pois estava disposta a cumprir com todas as determinações do partido, acredita que neste caso, seu nome apareceu mais que o da organização. Mesmo na prisão, onde o sofrimento foi intenso, diz que a dor fora suplantada pela alegria proporcionada pela luta. O único tormento era não ter notícias dos companheiros.
Seu envolvimento com o partido vai sendo descrito de forma rápida, como se a vivência daqueles dias ainda estivesse presente a cada palavra. Suas prisões, as primeiras impressões sobre a doutrina do partido, o fim da sua vida pessoal, as armadilhas da polícia. Dando a impressão de que, finalmente, tenha conseguido colocar um fim na sua inquietação interna, de ter encontrado uma motivação para a vida, de estar feliz.
Todas as suas escolhas são pautadas pela organização, pelo partido. Para ser considerada proletária, se vê obrigada a abandonar, definitivamente, Oswald pra quem voltou após sair da prisão, e com isso abandona, também, o filho. “Sofri horrivelmente deixando o Rudá. Eu sei o que sofri com isto, mas não houve de minha parte a menor hesitação. Talvez não o amasse tanto como julgava. (...).” (pág. 95). Embora tenha feito a opção pelo partido, ela não consegue ter a aprovação da organização, nem a crença nas suas intenções e fidelidade à causa. Em alguns momentos diz ter se submetido a caprichos sexuais para conseguir as informações desejadas. Nada lhe pertencia, tudo era do partido, inclusive seu corpo, mesmo assim, não tinha o crédito almejado. Herança de sua condição pequeno burguesa.
Ao ler estas páginas tem-se a impressão que Pagu sofreu todas as dores do mundo, sempre movida pela fé na causa revolucionária. Em contrapartida nada recebe em troca por parte do partido. Em vários momentos o leitor irá se irritar com as escolhas feitas por ela, uma ingenuidade que revolta, ao mesmo tempo em que enternece pela fé depositada numa causa. Assim, algumas separações e retornos para Oswald são feitos por vontade da organização. São momentos de amor e dor, pois são encontros e desencontros com o filho e, por mais que deseje ficar, ela sabe que irá abandoná-lo ao menor sinal ou determinação do partido.
Mesmo a possibilidade de empregar-se num jornal lhe é negada, pois a organização não aceita seu trabalho intelectual, alegam que ela tem que aceitar a proletarização, para poder participar da luta do partido. Essa postura muda apenas no momento em que se torna operária de uma metalúrgica. “Com o meu avental xadrez, com as mãos feridas, o rosto negro de pó, fui considerada comunista sincera.” (pág. 99). O reconhecimento de sua dedicação, lhe rende a participação na Conferência Nacional do partido onde conhece os “chefes supremos” do Partido Comunista Brasileiro e da Internacional no Brasil. Fome, dor, desconforto e duas horas de sono em cinco dias de conferência. Tudo perfeitamente justificável pela causa ali defendida. “O proletariado brasileiro guiado por uma vanguarda daquela têmpera se libertaria, seria vitorioso, dentro de pouco tempo.” (pág. 102).
Mesmo já tendo sido reconhecida sua dedicação, sofre novo afastamento. Agora por conta de sua intelectualidade que é anterior a militância, a direção do partido procura afastar todos os que não possuem origem proletária, devido ao comportamento de um casal de intelectuais que se envolvem emocionalmente, indo contra as diretrizes do partido. Embora de espírito questionador, Pagu, mesmo discordando, aceita todas as determinações com resignação, toma tudo como o melhor a ser feito. Trabalha intelectualmente na clandestinidade, é nesse período que publica Parque industrial, considerado o primeiro romance proletário brasileiro, sob o pseudônimo de Mara Lobo.
Volta ao partido, agora inserida no “Comitê Fantasma, o organismo de máxima ilegalidade do partido.” (pág. 106). A descrição da movimentação desse braço da organização é no mínimo revoltante, seus membros são de índole duvidosa, e as informações solicitadas eram as mais incomuns e muitas vezes sem sentido, mas que para adquiri-las eram usados qualquer subterfúgio. Era o que se esperava dela, que usasse de todas as possibilidades para obter as informações necessárias ao partido, inclusive seu próprio corpo. “(...) eis-me membro do Comitê Fantasma, obrigada à dissimulação, à intriga, ao fingimento, a toda espécie de maquiavelismo repugnante...” (pág. 117). Mesmo se sentindo usada e não concordando com algumas coisas, a sua fé na luta era inabalável.
Depois de sofrer novo afastamento, sem explicação, decide juntamente com Oswald, sair do Brasil. A organização do partido, sabendo da sua viajem, a designa para ir à Rússia, com seus próprios recursos, fornecem apenas os documentos. Começa assim suas viagens pelo mundo. EUA, Japão, China e Rússia. No texto não há grandes relatos dessas viagens, apenas algumas impressões, algumas descritas como sem importância total. Não havia novidades para ela, parecia tudo igual no mundo, até chegar à China. Lá, sua percepção a respeito das condições de vida da população chinesa a atormenta, incendiando de vez seu desejo pela revolução, pela salvação dos oprimidos “É tudo tão miseravelmente absurdo, que eu nunca tive coragem de narrar o que encontrei ali. A mentira, a fabula grotesca me horroriza pelo ridículo e eu mesma penso que tudo que vi foi mentira.” (pág. 144). Sua experiência com as drogas é narrada neste período de total descrédito do mundo.
Ao chegar a Sibéria todo o mal estar adquirido na China se esvai, sua alegria ao entrar no país onde o ideal revolucionário, teoricamente, esta se concretizando, onde o comunismo iguala a todos num bem estar comum, faz com que sinta a vida soprar em seu rosto. Seu deslumbramento é instantâneo, embora consciente do seu fanatismo, chora diante do túmulo de Lênin. Percebe alguns sinais de que nem tudo é do jeito que se apresenta aos seus olhos, mas prefere crer no seu coração, naquilo que buscou durante tanto tempo. Necessitava crer que a revolução dera certo em algum lugar no mundo, para assim crer que no Brasil, mesmo com muitos tropeços, também viria a ser real. Porem acontece o que ela menos espera, se encontra com uma criança faminta, maltrapilha, com saúde visivelmente abalada, pedindo esmolas pelas ruas de Moscou.
Neste momento ela se depara com a realidade nua e crua, que seu fanatismo não deixava enxergar, não considera sua luta equivocada, mas percebe que nem todos os sonhos são possíveis. Sofre na alma a dor de não conseguir ver os ideais comunistas atingindo quem, no seu ponto de vista, deveriam ser os mais protegidos: as crianças. Por tudo que sofreu em sua vida, pelas crianças da China, que a abalaram profundamente, por seu filho, do qual não cuidara da forma que considerava ideal, pela fé incondicional na causa, grande é sua decepção. O leitor sofre com Pagu, chora e se revolta por ela. De repente, tudo que nossos olhos enxergam no transcorrer da leitura deste texto, explodem diante dos olhos dela, como personagem real da história, uma história sem rascunhos, sem cópias, única. Ela se vê consumida como pessoa, que tudo abandonou para viver a luta proletária, para concretizar os ideais comunistas. Todo este mundo caiu por terra ao ver aquela criança sem lar, sem comida, sem saúde diante dela. Impossível pra quem esta lendo sua narrativa, absorver toda a decepção sentida “Então a Revolução se fez para isto? Para que continuem a humilhação e a miséria das crianças?” (pág. 150). Ao leitor fica a angustia de saber que se trata do mundo real, e não uma ficção muito bem escrita.
Pagu não abandona o partido, passa a trabalhar com a produção intelectual, colabora com jornais e revistas ainda na França. È presa em manifestações de rua. Volta ao Brasil e, em 1937, depois de uma condenação de dois anos de prisão por causa do levante comunista, foge da prisão e é considerada perigosa e inimiga pública do governo Vargas. Embora este período não faça parte dos relatos, percebe-se que a vida toda ela foi contestadora, corajosa e apaixonada. Mulher forte que cometeu muitos erros na vida, mas todos cometidos em busca de grandes acertos, acertos estes que atingissem a muitos, ao mundo. Embora em sua escrita, perceba-se uma tendência minimalista, ela foi muito mais do que deixa transparecer ao falar de si mesma. Pagu é merecedora de fazer parte da história política nacional, mas a história real, sem retoques. Merece ser vista por ela mesma, para que se chegue a conclusões próprias, este relatório é um convite que ela faz ao marido Geraldo para conhecê-la melhor e, no momento que seus filhos decidem publicá-lo, é estendido a todos que se interessam pelos personagens que marcaram nossa história. Conheçam Patrícia Galvão ou, simplesmente Pagu.GALVÃO, Patrícia. Paixão Pagu: uma autobiografia precoce de Patrícia Galvão. Org.: Geraldo Galvão Ferraz, 1ª edição. Rio de Janeiro: Agir Editora, 2005.
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Simplesmente Pagu: Resenha do livro ''Paixão Pagu - A autobiografia precoce de Patricia Galvão'' publicado 28/10/2010 por eliane aparecida de oliveira em http://www.webartigos.com
Fonte: http://www.webartigos.com/articles/50673/1/Simplesmente-Pagu-Resenha-do-livro-Paixao-Pagu---A-autobiografia-precoce-de-Patricia-Galvao/pagina1.html#ixzz17CHOSp2W
Mulher Paixão
Mulher paixão
Além de militante comunista e feminista, a escritora Pagu foi uma mulher que viveu e enfrentou sua época com toda a intensidade
O poeta e ensaísta mexicano Octavio Paz (1914-1998) costumava escrever que a vida de certas pessoas se confunde com a época e o lugar em que viveram. Em alguns casos, essa identificação é tão intensa que fica difícil saber quanto dos acontecimentos foram influenciados por essa pessoa e quanto dessa pessoa foi influenciada pelos acontecimentos.
Acredito que a brasileira Patrícia Rehder Galvão, nascida em São João da Boa Vista (SP), aos 9 dias de junho de 1910, e falecida em 12 de dezembro de 1962, na cidade de Santos (SP), é um exemplo de mulher que marcou e foi marcada, intensamente, por sua época. Pagu, como ficou conhecida, recebeu esse apelido do poeta antropofágico Raul Bopp, que pensava, quando a conheceu, que ela se chamava Patrícia Goulart. Dedicou a ela um poema em que se pode ler: “Você tem corpo de cobra/Onduladinho e indolente/Dum veneninho gostoso/Que dói na alma da gente”. Pagu foi militante comunista, cronista de jornal e uma das primeiras feministas no Brasil. Escandalizou a família conservadora e a elite paulistana da época (1920) quando assumiu, aos 11 anos, seu namoro com o cineasta Olympio Guilherme. Foi escritora de romance, gênero em que é reconhecida como a mulher pioneira a introduzir o romance proletário no Brasil com a obra intitulada Parque Industrial (1933). Esse romance foi relançado em 1994 e traduzido nos Estados Unidos pela Universidade de Nebraska sob a responsabilidade do pesquisador brasilianista David Jackson.
Aos 18 anos, ela aderiu ao Movimento Antropofágico, participando da Revista de Antropofagia em sua 2ª edição. Pagu assinou uma das primeiras colunas de TV do país, no jornal A Tribuna, adotando o pseudônimo Gim. Inaugurou, como mulher, a primeira coluna de histórias em quadrinhos com Malakabeça, Fanikita e Kabeluda. Foi a primeira tradutora no Brasil de escritores como James Joyce, Mallarmé, Octavio Paz, Beckett, Bretton, Vallery e outros. Na ficção, David Jackson coloca Pagu ao lado de escritores do porte de George Orwell e Aldous Huxley. Jackson encerra seu prefácio do livro Paixão Pagu: a Autobiografia Precoce de Patrícia Galvão da seguinte maneira: “Mulher inteligente, independente, audaciosa, insubordinada, num Brasil ainda pouco modernista para tão imensa oferta”.
Perseguida e torturada pelo Estado Novo
Para fazer jus à definição, Patrícia Galvão pagou um preço muito alto durante toda sua vida. A mão pesada da ditadura de Getúlio Vargas caiu com toda força e crueldade sobre essa mulher que nunca se dobrou ou fez concessões. Pagu colocou como poucos toda sua força e sua paixão naquilo que fez. Suas decisões sempre foram marcadas pela radicalidade das decisões apaixonadas. Pagu dedicou suas melhores energias à militância política. Fez isso desde seu ingresso, ainda muito jovem, no Partido Comunista Brasileiro – que teve a honra de fazer pelas mãos do lendário dirigente Luiz Carlos Prestes – até o seu total desencanto com o ideário revolucionário comunista. Desencanto que aconteceu em plena Praça Vermelha no coração de Moscou, na Rússia. Foi quando viu, e não conseguiu entender, como uma criança podia estar pedindo esmolas no “altar” da revolução que se fez em nome da redenção da classe operária. Perguntou-se, então: “A revolução se fez para isto? Para que continuem a humilhação e a miséria das crianças?”.
Sua condição de inimiga política do Estado Novo fez com que fosse presa 23 vezes pela ditadura de Getúlio Vargas. Da última prisão, saiu viva por um detalhe. Mesmo muito jovem – tinha na época apenas 30 anos –, sua saúde estava muito debilitada em função das péssimas condições da prisão e das violentas torturas sofridas.
A intensidade da vida e da obra de Pagu pode ser avaliada por meio da sua repercussão no cinema, em filmes como Eternamente Pagu (1988) e em documentários como Eh Pagu Eh (1982) e Patrícia Galvão: Livre na Imaginação, no Espaço e no Tempo (2001).
Na literatura, ganhou vários textos e livros sobre sua vida. Em seriados na TV, seu personagem apareceu em Um Só Coração (Globo, 2004). Foi musa retratada em desenhos e pinturas de Cândido Portinari e Di Cavalcanti. Também inspirou a música na composição Pagu, de Rita Lee e Zélia Duncan, e mais tarde na voz de Maria Rita.
Enfim, esta modernista é um ótimo exemplo de uma intelectual e artista que conseguiu ultrapassar épocas e gerações. Seu legado, mesmo que pouco conhecido nos ambientes mais embrutecidos de certa academia e intelectualidade copista, recebe uma atenção especial daqueles e daquelas que continuam em busca de “algo de novo sob o sol” na cultura brasileira e latino-americana.
O poeta Carlos Drummond de Andrade não passou imune ao charme de Pagu e se refere a ela como uma mulher que imprimiu um colorido todo especial para a luta política da época, bem como para o movimento modernista de 1922. Pouco antes de morrer, o teatrólogo maldito Plínio Marcos se referiu à Pagu como uma espécie de anjo “indisciplinado e rebelde” que veio a este mundo para nos incomodar.
Desencanto com o comunismo
Bendito incômodo este produzido por Pagu. Numa época em que ainda vemos tanta imitação na arte, na filosofia, na política e na educação, nada mais oportuno que olhar para o exemplo da mulher que soube, como poucas, viver sua época com toda a intensidade que suas forças lhe permitiram. Patrícia Galvão nunca deixou de assumir com dignidade e radicalidade suas ideias. Após sua permanência na União Soviética como militante revolucionária internacional, começou a se dar conta de que grande parte de tudo aquilo que ela combatia no regime capitalista era, também, muito presente no regime socialista que ela adotou como bandeira e religião. Ficou chocada com as intrigas, as traições, as delações, as perseguições e com os julgamentos e as execuções sumárias que viu acontecerem no interior do partido comunista ao qual ela servia como um fiel soldado.
Em uma carta escrita durante a prisão, ela relatou experiências e desencantos com o ideário político que adotou incondicionalmente durante toda sua vida. Na carta remetida em 1940 para seu então marido, o jornalista Geraldo Ferraz, Pagu faz um inventário e um relatório ao mesmo tempo minucioso e dramático de sua vida. Não ficam fora desta carta suas relações afetivas. Dedica uma especial atenção a sua relação tumultuada e ao mesmo tempo muito companheira e cúmplice com o antropofágico Oswald de Andrade, com quem foi casada e teve o filho Rudá Andrade.
A leitura dessa carta-biografia pode nos mostrar muito mais da Patrícia Galvão. Pode nos levar a conhecer uma mulher para além da militante comunista, da feminista engajada, da operária de fábricas na década de 30. Revela-nos alguém capaz de resumir sua vida dizendo: “Sempre achei trágica minha vida. Absurdamente trágica. Hoje parece apenas que lhe conto que fui à quitanda comprar laranjas”.
Como santista de coração, amava o mar de Santos, cidade que escolheu para viver seus últimos dias. Foi uma mãe capaz de morrer pela felicidade do filho; uma mulher capaz de dividir meia fatia de pão com uma criança faminta ou caminhar horas para encontrar um amigo para conversar.
Pagu foi uma lutadora até o final de seus dias. Tentou suicídio no desespero de uma doença incurável. Após resignar-se, começou a lutar bravamente contra o câncer que lhe ceifou a vida aos 52 anos.
Termino este texto com a frase com que Pagu inicia sua carta-depoimento e como forma de um convite a sua leitura: “Não escreverei aqui sobre a morte ou sobre mortes. Quero escrever sobre a vida, pois há pequeninas flores sob as esbeltas palmeiras, é uma noite com uma certa aragem respingada finíssima e fria e o visitante foi embora...”.
Professor da UFSM e escritor. Pós-doutor em Antropofagia Cultural Brasileira. Coordena o Núcleo Kitanda: Educação e Intercultura – CNPq/UFSM
http://www.clicrbs.com.br/dsm/rs/impressa/4,1304,3099713,15848
Modernismo - Parque Industrial
[...]
Na grande penitenciária social os teares se elevam e marcham esgoelando. Bruna está com sono. Estivera num baile até tarde. Pára e aperta com raiva os olhos ardentes. Abre a boca cariada, boceja. Os cabelos toscos estão polvilhados de seda.
- Puxa! Que este domingo não durou… Os ricos podem dormir à vontade.
- Bruna! Você se machuca. Olha as tranças!
É o seu companheiro de perto.
O chefe da oficina se aproxima, vagaroso, carrancudo.
- Eu já falei que não quero prosa aqui!
- Ela podia se machucar...
- Malandros! É por isso que o trabalho não rende! Sua vagabunda!
Bruna desperta. O moço abaixa a cabeça revoltada. É preciso calar a boca! Assim, em todos os setores proletários, todos os dias, todas as semanas, todos os anos.
Nos salões dos ricos, os poetas lacaios declamam:
Como é lindo o teu tear!
[...]
Novamente as ruas se tingem de cores proletárias. É a saída da fábrica. O apito escapa da chaminé gigante, libertando uma humanidade inteira que se escoa para as ruas da miséria. Um pedaço da fábrica regressa ao cortiço.
Patrícia Galvão (Pagú)
O que li
Diz o velho provérbio popular que "para um bom entendedor, poucas palavras bastam". E como bastam! Ainda mais quando ditas com sabedoria, conhecimento de causa e com a eficiência de quem sabe verbalizar de forma sucinta situações recheadas de particularidades, a exemplo de uma das principais mazelas sociais sempre presente nas organizações humanas: a exploração da maioria pobre e mais fraca pela minoria rica e mais poderosa, tema este exposto no livro "Parque Industrial", da escritora, poetisa, desenhista e ativista cultural e política Patrícia Galvão (a Pagú - nome de destaque da chamada "Segunda Geração Modernista" brasileira), do qual reproduzimos um pequeno "grande" trecho; pequeno no tamanho, mas gigante na mensagem que consegue passar ao leitor.
Considerado uma jóia da literatura brasileira do século XX, "Parque Industrial" foi escrito em 1932 e publicado pela primeira vez em 1933, numa edição de tiragem e divulgação pequenas financiada pelo escritor Oswald de Andrade. Primeiro romance proletário brasileiro, o livro mostra a realidade vivida pelos excluídos da sociedade paulistana, vítimas de uma desigualdade social que (tal como acontece nos dias atuais) massacrava e humilhava as camadas populares e privilegiava uns poucos detentores do poder político e econômico.
Por ser um romance de caráter extremamente político-social, e em razão de atrito com o Partido Comunista, ao qual era filiada e no qual enfrentava restrições devido à sua origem pequeno-burguesa, a autora foi impedida de assinar o livro com o seu nome verdadeiro, valendo-se, para isso, do pseudônimo "Mara Lobo", fato que não tirou o brilho da iniciativa.
Apresentada a obra, falemos mais sobre a autora Patrícia Galvão, nome também pouco falado nos livros didáticos e nas aulas de Literatura Brasileira em todo o país, mas de grande movimentação e produção, tanto nos meios literário e cultural quanto na vida política brasileira.
Nascida em 9 de junho de 1910, em São João da Boa Vista /SP, Patrícia Rehder Galvão tinha apenas 12 anos quando, sob o comando dos escritores Oswald e Mário de Andrade, o Teatro Municipal de São Paulo entrou para a história como sede de um movimento artístico-literário que marcou uma mudança radical na forma de produzir arte e literatura no País: a Semana de Arte Moderna realizada em fevereiro de 1922 - marco inicial do Modernismo brasileiro. Seis anos depois (em 1928), então com 18 anos de idade, a jovem poetisa recebeu do escritor Raul Bopp o apelido de "Pagú" e foi por ele introduzida no salão da Alameda Barão de Piracicaba, nas reuniões oferecidas pelo escritor e poeta Oswald de Andrade e pela artista plástica Tarsila do Amaral - "o casal mais admirado e requisitado da sociedade paulistana".
Sob a influência do casal, de quem se tornou grande e inseparável amiga, Pagú participou ativamente do movimento antropofágico liderado por Oswald e marcado pelo radicalismo dos princípios da primeira fase do Modernismo brasileiro de rompimento com o passado e com toda e qualquer regra academicista na produção literária. Dois anos depois (em 1930), casou-se com Oswald (sem perder a amizade de Tarsila) e da relação nasceu o filho Rudá de Andrade. No ano seguinte (1931), filiou-se ao Partido Comunista; editou, junto com Oswald de Andrade, o jornal "O Homem do Povo" (onde assinou a coluna feminista "A Mulher do Povo"), e acabou sendo presa pela primeira durante participação em comício do partido e dos estivadores, em Santos.
Em 1933 Patrícia Galvão publicou o seu primeiro romance ("Parque Industrial"), sob o pseudônimo de Mara Lobo, e depois saiu em viagem pelo mundo, passando pelos EUA, Japão, Polônia, Alemanha, URSS e França. Em 1935, sob a identidade de Leonnie, foi presa em Paris (como comunista estrangeira) e repatriada para o Brasil, onde começou a trabalhar no jornal "A Platéia". Separada definitivamente de Oswald de Andrade, foi novamente presa e torturada, ficando na cadeia por cinco anos. Ao sair da prisão (em 1940), rompeu com o Partido Comunista; casou-se com o jornalista Geraldo Ferraz, e iniciou intensa participação na imprensa, atuando sobretudo como crítica de arte. Em 1945 saiu o seu segundo romance: "A Famosa Revista", escrito em parceria com Geraldo Ferraz.
Dedicando-se à crítica literária, teatral e de televisão, à produção literária ((escreveu também contos policiais, sob o pseudônimo King Shelter, publicados na revista Detective, dirigida pelo dramaturgo Nelson Rodrigues) e à militância política, Pagú destacou-se, sobretudo, pela coragem de defender seus ideais, característica que lhe rendeu vinte e três prisões, além de muita perseguição, humilhação e tortura.
Aos 52 anos de idade, Patrícia Galvão morreu no dia 12 de dezembro de 1962, pouco tempo depois de ser submetida, em Paris, a uma cirurgia para retirada de um câncer.
Sobre sua principal obra, a crítica especializada escreveu:
"Parque Industrial, que Pagú escreveu ainda muito jovem, foi um marco: é considerado o primeiro romance proletário brasileiro. O livro adentra, com todas as cores reais, o cotidiano das mulheres operárias da década de 30 na região do Brás, em São Paulo. No Parque Industrial de Pagú estão os dias cansados, as ruas, as casas, os quartos, os sonhos das operárias. Lá está a trabalhadora grávida, que perde o amante, o emprego, o filho, a liberdade [...] Pagú mostra o despertar das operárias para a luta. 'O Brás acorda. A revolta é alegre. A greve, uma festa!'. Depois, mostra a repressão. No Parque Industrial, Pagú se veste de todas aquelas mulheres. Ela é Rosinha Lituana, dirigindo e encorajando as colegas. Ela é a esperança de Otávia, é a dor de Corina."
Grygena Targino GRYGENA TARGINO É FORMADA EM PEDAGOGIA PELA UFPB E ALUNA DOS CURSOS DE LETRAS (UFPB) E DE ESPECIALIZAÇÃO EM PSICOPEDAGOGIA (UNIPÊ)jg.leituraobrigatoria@hotmail.com
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